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BIOGRAFIA/"EDUCAÇÃO DE UM BANDIDO"
Bunker e o mundo do criminoso letrado
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
Edward Bunker (1933-2005)
roubou sorvete do vizinho
aos quatro anos e furou o olho de
outro garoto aos 15. Foi para o
abrigo juvenil aos dez, para o reformatório aos 13 e para a prisão
aos 17. Sua ficha policial era composta por dois volumes, o primeiro deles com a espessura do guia
telefônico de Los Angeles. Mas,
embora tenha assaltado bancos,
traficado heroína e retalhado um
inimigo com uma gilete, sua fama
se deve a um motivo bem mais
prosaico: os livros que escreveu.
"Educação de um Bandido", autobiografia agora lançada no Brasil, conta essa trajetória num tom
tão desconcertante quanto os fatos narrados. Bunker é um homem raro não apenas porque leu
Dostoiévski atrás das grades ou
nadou na piscina de W. R. Hearst,
o próprio Cidadão Kane, mas
porque soube filtrar a experiência
com um apuro formal verdadeiramente literário. Ao contrário da
maioria dos relatos de ex-detentos, o livro não tem um único trecho de auto-indulgência. O leitor
não é forçado a relevar, com a superioridade paternalista de sua
má consciência, os lapsos de escolaridade, lógica, estilo e visão de
mundo de um criminoso medianamente letrado, e apenas isso.
Bunker vai muito além. Dono
de uma inteligência excepcional e
de um traço quase maníaco de
perseverança, ele teve a sorte de
contar com as boas bibliotecas
das prisões californianas, além da
proteção de Louise, mulher do
produtor cinematográfico Hal
Wallis. É ela quem lhe dá uma assinatura do "New York Times",
por exemplo, e o ajuda a fechar o
ciclo de uma sólida formação autodidata. Sem essa ferramenta, as
particularidades de uma biografia
tão rica dificilmente virariam o
testemunho universal que é "Educação de um Bandido".
Um dos motivos é a forma como Bunker lida com a delicada
questão ética de sua experiência.
Em vez de diluir a responsabilidade individual na sociologia, como
se tudo se devesse a um mundo
injusto e desigual, ele enxerga os
próprios atos tanto em sua dimensão aceitável quanto monstruosa. Sua infância e adolescência foram conturbadas, as instituições corretivas são escolas de
brutalidade, mas boa parte das
encrencas são criadas pelo veneno do livre arbítrio. O Bunker que
jamais delatou alguém é o mesmo
que atacava guardas e companheiros por um simples comentário ou piada fora de hora. Ele nunca se orgulhou disso, mas também se recusa a pedir desculpas.
No fim das contas, essa franqueza deixa mais perguntas do que
respostas. Bunker ganha a liberdade e vê romances como "Nem
os Mais Ferozes" sendo admirados por James Ellroy e Quentin
Tarantino. Escreve o roteiro de
"Expresso para o Inferno" e atua
numa ponta de "Cães de Aluguel". Apesar do destino inesperado, que inclui um filho e um casamento bem-sucedido, ele termina os dias consciente da ambigüidade que o acompanha: "Os
traços que me fizeram lutar contra o mundo são também os que
me fizeram vencer". Mesmo que a
vitória, no vigor sábio e apaixonado de sua prosa, seja um conceito
de definição muito difícil.
Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" (2001) e "Longe da Água" (2004), ambos da Companhia das Letras
Educação de um Bandido
Autor: Edward Bunker
Tradução: Francisco R. S. Innocêncio
Editora: Barracuda
Quanto: R$ 43 (384 págs.)
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