São Paulo, sábado, 12 de novembro de 2005

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BIOGRAFIA/"EDUCAÇÃO DE UM BANDIDO"

Bunker e o mundo do criminoso letrado

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Edward Bunker (1933-2005) roubou sorvete do vizinho aos quatro anos e furou o olho de outro garoto aos 15. Foi para o abrigo juvenil aos dez, para o reformatório aos 13 e para a prisão aos 17. Sua ficha policial era composta por dois volumes, o primeiro deles com a espessura do guia telefônico de Los Angeles. Mas, embora tenha assaltado bancos, traficado heroína e retalhado um inimigo com uma gilete, sua fama se deve a um motivo bem mais prosaico: os livros que escreveu.
"Educação de um Bandido", autobiografia agora lançada no Brasil, conta essa trajetória num tom tão desconcertante quanto os fatos narrados. Bunker é um homem raro não apenas porque leu Dostoiévski atrás das grades ou nadou na piscina de W. R. Hearst, o próprio Cidadão Kane, mas porque soube filtrar a experiência com um apuro formal verdadeiramente literário. Ao contrário da maioria dos relatos de ex-detentos, o livro não tem um único trecho de auto-indulgência. O leitor não é forçado a relevar, com a superioridade paternalista de sua má consciência, os lapsos de escolaridade, lógica, estilo e visão de mundo de um criminoso medianamente letrado, e apenas isso.
Bunker vai muito além. Dono de uma inteligência excepcional e de um traço quase maníaco de perseverança, ele teve a sorte de contar com as boas bibliotecas das prisões californianas, além da proteção de Louise, mulher do produtor cinematográfico Hal Wallis. É ela quem lhe dá uma assinatura do "New York Times", por exemplo, e o ajuda a fechar o ciclo de uma sólida formação autodidata. Sem essa ferramenta, as particularidades de uma biografia tão rica dificilmente virariam o testemunho universal que é "Educação de um Bandido".
Um dos motivos é a forma como Bunker lida com a delicada questão ética de sua experiência. Em vez de diluir a responsabilidade individual na sociologia, como se tudo se devesse a um mundo injusto e desigual, ele enxerga os próprios atos tanto em sua dimensão aceitável quanto monstruosa. Sua infância e adolescência foram conturbadas, as instituições corretivas são escolas de brutalidade, mas boa parte das encrencas são criadas pelo veneno do livre arbítrio. O Bunker que jamais delatou alguém é o mesmo que atacava guardas e companheiros por um simples comentário ou piada fora de hora. Ele nunca se orgulhou disso, mas também se recusa a pedir desculpas.
No fim das contas, essa franqueza deixa mais perguntas do que respostas. Bunker ganha a liberdade e vê romances como "Nem os Mais Ferozes" sendo admirados por James Ellroy e Quentin Tarantino. Escreve o roteiro de "Expresso para o Inferno" e atua numa ponta de "Cães de Aluguel". Apesar do destino inesperado, que inclui um filho e um casamento bem-sucedido, ele termina os dias consciente da ambigüidade que o acompanha: "Os traços que me fizeram lutar contra o mundo são também os que me fizeram vencer". Mesmo que a vitória, no vigor sábio e apaixonado de sua prosa, seja um conceito de definição muito difícil.


Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" (2001) e "Longe da Água" (2004), ambos da Companhia das Letras

Educação de um Bandido
    
Autor: Edward Bunker
Tradução: Francisco R. S. Innocêncio
Editora: Barracuda
Quanto: R$ 43 (384 págs.)


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