São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cinema/análise

"O Ano..." emociona sem manipular

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jean Pierre Melville, diretor de "O Círculo Vermelho", "O Samurai" e outros filmes que influenciaram a tropa da nouvelle vague, se viu uma vez confrontado à seguinte pergunta de um estudante de cinema: em termos percentuais, quais os fatores mais importantes para que um filme seja bom? Melvil-le não pestanejou. Devolveu na lata: "50% a escolha da história; 50% o roteiro; 50% os atores; 50% a fotografia; 50% a montagem; 50% a música e assim por diante. E, se um desses elementos for na direção errada, você acaba de estragar 50% de seu filme, meu jovem".
Um filme deve ter, portanto, um vetor de desenvolvimento em torno do qual devem se agregar todos os departamentos que o compõem. "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", dirigido por Cao Hamburger, é um desses raros filmes em que essa conjugação de elementos floresce.
Tudo parece conspirar para tornar a história de Mauro -pré-adolescente de classe média que vai viver um ritual de passagem em um momento crucial da vida brasileira, 1970- ao mesmo tempo singular e emblemática.
Belo Horizonte. Mauro parte de férias com seus pais. Destino: o bairro do Bom Retiro, em São Paulo, em que o menino vai ser deixado com o avô numa comunidade judaica. Na estrada, a presença de veículos militares dá indícios de que estamos numa época de exceção. Um período marcado por diferentes formas de exílio: político -o golpe militar-, social -o "milagre econômico"- e afetivo -"Brasil, ame-o ou deixe-o". Uma época de não-ditos, exemplarmente refletidos na trama de "O Ano...". Não se explica que os pais de Mauro estão envolvidos na resistência ao golpe. Sente-se. Pelos olhares ou pelo tempo em suspenso, como nos momentos em que Mauro espera pelo avô que não chega. Filho de mãe católica e pai judeu não-praticante, o menino vê-se frente a rituais que desconhece. Como o goleiro que almeja ser, Mauro assiste ao jogo (os códigos de uma comunidade) à distância.
Com pinceladas delicadas, a narrativa se transforma e se enriquece. Pouco a pouco, um filme sobre a questão do exílio se transforma também num filme sobre o pertencimento. Pertencimento a uma comunidade, a um país desejado -a uma coletividade. O espectador é convidado a entrar junto com Mauro nesse mundo desconhecido.
A opção de misturar atores e não-atores no mesmo filme tem um papel fundamental no cumprimento desse objetivo. Tanto o estreante Michel Joelsas (Mauro) quanto o comovente ator amador Germano Haiut (Schlomo) ou o excelente Caio Blat (Ítalo) estão todos fazendo o mesmo filme, independentemente da experiência que têm. Conferem uma autenticidade que é decisiva para a história que está sendo narrada.
Enquanto o cinema norte-americano vive hoje uma inflação dramatúrgica, em que fatos extraordinários acontecem a cada cinco minutos para prender o espectador no cabresto, "O Ano...." faz a aposta oposta, mais próxima daquilo que o novo cinema argentino tem nos oferecido. Narrativas que acreditam na força expressiva do silêncio, dos espaços em branco que devem ser completados pelo espectador. É uma opção corajosa e que nem sempre dá certo, porque pede que cada elemento da história esteja impregnado de sentido, de um significado, que nem sempre deve aflorar.
Se "O Ano..." é um filme tão bem-sucedido, é porque cada plano parece grávido do plano anterior e ecoa no plano seguinte. Uma estrutura musical, orquestrada com mão de mestre por Cao Hamburger, que depois de nos oferecer o melhor trabalho feito neste ano para a televisão ("Os Filhos do Carnaval"), também dirigiu um dos melhores filmes de 2006.
Para terminar: movimentos tão diversos quanto o neo-realismo italiano, o cinema novo brasileiro, o cinema independente norte-americano dos anos 70 ou o novo cinema argentino provaram que os melhores filmes não são simplesmente sobre personagens, e sim sobre personagens que são transformados por uma realidade política e social específica.
Com "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", Cao Hamburger fala ao mesmo tempo da ausência de um pai e de um país. Um filme que, além de suas qualidades cinematográficas, emociona sem manipular o espectador. Ao contrário, convida-o a participar de uma história que diz respeito a todos. Não é pouco.


WALTER SALLES, 50, é diretor de "Terra Estrangeira" (em parceria com Daniela Thomas), "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta", entre outros.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Boca-a-boca é trunfo na briga pelo público
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.