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Cinema/análise
"O Ano..." emociona sem manipular
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Jean Pierre Melville, diretor
de "O Círculo Vermelho", "O
Samurai" e outros filmes que
influenciaram a tropa da nouvelle vague, se viu uma vez confrontado à seguinte pergunta de um estudante de cinema: em
termos percentuais, quais os
fatores mais importantes para
que um filme seja bom? Melvil-le não pestanejou. Devolveu na
lata: "50% a escolha da história;
50% o roteiro; 50% os atores;
50% a fotografia; 50% a montagem; 50% a música e assim por
diante. E, se um desses elementos for na direção errada, você
acaba de estragar 50% de seu
filme, meu jovem".
Um filme deve ter, portanto,
um vetor de desenvolvimento
em torno do qual devem se
agregar todos os departamentos que o compõem. "O Ano em
que Meus Pais Saíram de Férias", dirigido por Cao Hamburger, é um desses raros filmes em que essa conjugação de
elementos floresce.
Tudo parece conspirar para
tornar a história de Mauro
-pré-adolescente de classe
média que vai viver um ritual
de passagem em um momento
crucial da vida brasileira,
1970- ao mesmo tempo singular e emblemática.
Belo Horizonte. Mauro parte
de férias com seus pais. Destino: o bairro do Bom Retiro, em
São Paulo, em que o menino vai
ser deixado com o avô numa comunidade judaica. Na estrada,
a presença de veículos militares dá indícios de que estamos
numa época de exceção. Um
período marcado por diferentes formas de exílio: político -o
golpe militar-, social -o "milagre econômico"- e afetivo
-"Brasil, ame-o ou deixe-o".
Uma época de não-ditos,
exemplarmente refletidos na
trama de "O Ano...". Não se explica que os pais de Mauro estão envolvidos na resistência ao golpe. Sente-se. Pelos olhares
ou pelo tempo em suspenso,
como nos momentos em que
Mauro espera pelo avô que não
chega. Filho de mãe católica e
pai judeu não-praticante, o menino vê-se frente a rituais que
desconhece. Como o goleiro
que almeja ser, Mauro assiste
ao jogo (os códigos de uma comunidade) à distância.
Com pinceladas delicadas, a
narrativa se transforma e se
enriquece. Pouco a pouco, um
filme sobre a questão do exílio
se transforma também num filme sobre o pertencimento.
Pertencimento a uma comunidade, a um país desejado -a
uma coletividade. O espectador
é convidado a entrar junto com
Mauro nesse mundo desconhecido.
A opção de misturar atores e
não-atores no mesmo filme
tem um papel fundamental no
cumprimento desse objetivo.
Tanto o estreante Michel Joelsas (Mauro) quanto o comovente ator amador Germano
Haiut (Schlomo) ou o excelente
Caio Blat (Ítalo) estão todos fazendo o mesmo filme, independentemente da experiência que têm. Conferem uma autenticidade que é decisiva para a história que está sendo narrada.
Enquanto o cinema norte-americano vive hoje uma inflação dramatúrgica, em que fatos extraordinários acontecem a
cada cinco minutos para prender o espectador no cabresto,
"O Ano...." faz a aposta oposta,
mais próxima daquilo que o novo cinema argentino tem nos
oferecido. Narrativas que acreditam na força expressiva do silêncio, dos espaços em branco que devem ser completados pelo espectador. É uma opção corajosa e que nem sempre dá certo, porque pede que cada
elemento da história esteja impregnado de sentido, de um significado, que nem sempre deve aflorar.
Se "O Ano..." é um filme tão
bem-sucedido, é porque cada
plano parece grávido do plano
anterior e ecoa no plano seguinte. Uma estrutura musical,
orquestrada com mão de mestre por Cao Hamburger, que
depois de nos oferecer o melhor trabalho feito neste ano
para a televisão ("Os Filhos do
Carnaval"), também dirigiu um
dos melhores filmes de 2006.
Para terminar: movimentos
tão diversos quanto o neo-realismo italiano, o cinema novo
brasileiro, o cinema independente norte-americano dos
anos 70 ou o novo cinema argentino provaram que os melhores filmes não são simplesmente sobre personagens, e
sim sobre personagens que são
transformados por uma realidade política e social específica.
Com "O Ano em que Meus
Pais Saíram de Férias", Cao
Hamburger fala ao mesmo
tempo da ausência de um pai e
de um país. Um filme que, além
de suas qualidades cinematográficas, emociona sem manipular o espectador. Ao contrário, convida-o a participar de
uma história que diz respeito a
todos. Não é pouco.
WALTER SALLES, 50, é diretor de "Terra Estrangeira" (em parceria com Daniela Thomas), "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta",
entre outros.
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