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São Paulo, sexta-feira, 12 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A tosse que ameaça uma vaga

O menino passou pela rua, havia uma obra em construção, e lá estava o cartaz: "Há vaga". Ele não sabia o que era vaga; quando chegou em casa perguntou ao irmão mais velho, que se preparava para o Pedro 2º. Ficou sabendo o que era vaga, mas não entendeu direito o cartaz. Se fosse o contrário (não há vagas), seria compreensível. Um recado de que tudo estava completo, de nada precisavam, nem de material nem de gente.
Mas, se havia vaga, havia oferta. Não precisava de aviso, quem precisasse ia entrando e se oferecendo. Tal como na quitanda da dona Balbina, uma portuguesa que tinha um bigode espesso e falava gritando. Tudo o que havia em sua quitanda era exibido, escancarado em cestos e prateleiras. Ela só avisava quando não tinha alguma coisa; colocava, então, a cartolina azul com letras em branco: "Não há tomate".
Sabendo vagamente o que era uma vaga, ele nunca precisou se preocupar com vagas ou não-vagas. Havia vaga na matriz de Nossa Senhora da Guia, onde faria a primeira comunhão. Havia vaga no estadiozinho da rua Campos Sales, do América Futebol Clube, a bela porta redonda e vermelha com as letras em branco, AFC, seu primeiro time. Havia vaga no Cine Real, na rua Barão de Bom Retiro, onde acompanhou as aventuras de Flash Gordon no planeta Mongo e ficou apavorado com Bela Lugosi em seu primeiro Drácula.
Vaga, enfim, é que o não faltava na vida e no mundo. Tudo o que o menino quis se oferecia vagamente para ele. Nunca foi à Lua porque nunca desejou ir tão longe, mas, se desejasse, certamente teria uma vaga à sua disposição, embora naquele tempo nem houvesse Nasa.
De repente, o menino cresceu e foi abordado pelo amigo: queria uma vaga na instituição que o ex-menino agora frequentava. O regulamento era secular e severo: alguém só podia entrar se houvesse vaga aberta pela morte de outro. Ninguém morrera e o ex-menino se lembrou daquele cartaz às avessas: "Não há vaga".
Mas o amigo não se perturbou. No momento, não havia vaga, mas dali a um mês, uma semana, um dia, quem sabe, ele queria o compromisso, a promessa de que, na próxima vaga, teria uma chance. Não custava prometer e o ex-menino prometeu, sim, na próxima vaga vamos pensar e, como sempre acontecia quando ficava aborrecido, teve uma tosse seca, curta e inofensiva.
Notou que o amigo o olhou com mais interesse. "Você está doente?" -perguntou. Não, não, o ex-menino estava bem, estava ótimo, a tosse era o abuso do cigarro, prometia-se deixar de fumar, mas tinha o caráter fraco, fumava dois maços por dia.
À noite, logo após o jantar, o telefone tocou. Era o amigo que desejava notícias de sua saúde, se melhorara da tosse. Ele nem mais se lembrava de que tossira, agradeceu o interesse e, no dia seguinte, teve de agradecer outra vez, o amigo queria saber se tudo estava realmente bem.
Estava. Mas lembrou-se de que, cinco anos antes, antes de entrar na venerável instituição, ele sofrera um acidente, a lancha do sogro emborcara na foz do rio Suruí, onde costumava pescar badejos, batera com a cabeça na hélice que ainda rodava, sofrera traumatismo cerebral, ficou em coma durante duas semanas. Evidente que os amigos mais chegados, a família, os vizinhos, perguntavam por ele, de certa forma torciam para que ele resistisse e, quando se recuperou, houve missa de ação de graças na igreja de São José, os parentes, meia dúzia de amigos, nada mais.
E agora um simples pigarro provocado pelo abuso do cigarro e tinha atrás de si, quase diariamente, o telefonema do novo amigo, preocupadíssimo com a sua saúde, a sua tosse circunstancial. Para aumentar seu pasmo diante do desvelo brutal que passou a persegui-lo ("Como vai sua tosse? Já deixou o cigarro?"), ele recebeu a carta de um sujeito que não era seu amigo nem conhecido. Ficou sabendo que a sua tosse se espalhara pelo mercado, havia agora pessoas preocupadas com a sua saúde.
Na rua, nos lugares que frequentava, havia sempre a inesperada pergunta: melhorara da gripe? Que logo se tornou pneumonia, inicialmente simples, depois dupla e letal. Não adiantava confessar que estava bem, que continuava trabalhando normalmente. Por azar, teve de viajar, resolver um problema de partilha em Barra Mansa, uma casa do avô que o Estado havia tombado e destombado, era para passar uma semana, passou duas fora do Rio.
Quando voltou, foi recebido como um Lázaro que irrompera do túmulo, soltando ao vento sua mortalha ensanguentada.
Como? Continuava vivo? As notícias que corriam na praça eram de que seu estado se tornou terminal, irreversível, coisa de um dia a mais ou a menos. Mais do que um moribundo, era uma vaga.
Lembrou-se, então, do cartaz na obra em construção de seu distante Lins de Vasconcelos. Lembrou-se da quitanda de dona Balbina, que colocava a cartolina azul com o aviso: "Não há tomate". Bem, seria ridículo andar pelas ruas e pelos caminhos da cidade com um cartaz no peito e nas costas: "Não há vaga". E passou a usar umas pastilhas indianas que ajudavam os fumantes que desejavam se livrar do cigarro.

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