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CARLOS HEITOR CONY
A tosse que ameaça uma vaga
O menino passou pela rua,
havia uma obra em construção, e lá estava o cartaz: "Há
vaga". Ele não sabia o que era vaga; quando chegou em casa perguntou ao irmão mais velho, que
se preparava para o Pedro 2º. Ficou sabendo o que era vaga, mas
não entendeu direito o cartaz. Se
fosse o contrário (não há vagas),
seria compreensível. Um recado
de que tudo estava completo, de
nada precisavam, nem de material nem de gente.
Mas, se havia vaga, havia oferta. Não precisava de aviso, quem
precisasse ia entrando e se oferecendo. Tal como na quitanda da
dona Balbina, uma portuguesa
que tinha um bigode espesso e falava gritando. Tudo o que havia
em sua quitanda era exibido, escancarado em cestos e prateleiras.
Ela só avisava quando não tinha
alguma coisa; colocava, então, a
cartolina azul com letras em
branco: "Não há tomate".
Sabendo vagamente o que era
uma vaga, ele nunca precisou se
preocupar com vagas ou não-vagas. Havia vaga na matriz de
Nossa Senhora da Guia, onde faria a primeira comunhão. Havia
vaga no estadiozinho da rua
Campos Sales, do América Futebol Clube, a bela porta redonda e
vermelha com as letras em branco, AFC, seu primeiro time. Havia
vaga no Cine Real, na rua Barão
de Bom Retiro, onde acompanhou as aventuras de Flash Gordon no planeta Mongo e ficou
apavorado com Bela Lugosi em
seu primeiro Drácula.
Vaga, enfim, é que o não faltava
na vida e no mundo. Tudo o que o
menino quis se oferecia vagamente para ele. Nunca foi à Lua porque nunca desejou ir tão longe,
mas, se desejasse, certamente teria uma vaga à sua disposição,
embora naquele tempo nem houvesse Nasa.
De repente, o menino cresceu e
foi abordado pelo amigo: queria
uma vaga na instituição que o ex-menino agora frequentava. O regulamento era secular e severo:
alguém só podia entrar se houvesse vaga aberta pela morte de outro. Ninguém morrera e o ex-menino se lembrou daquele cartaz às
avessas: "Não há vaga".
Mas o amigo não se perturbou.
No momento, não havia vaga,
mas dali a um mês, uma semana,
um dia, quem sabe, ele queria o
compromisso, a promessa de que,
na próxima vaga, teria uma
chance. Não custava prometer e o
ex-menino prometeu, sim, na
próxima vaga vamos pensar e, como sempre acontecia quando ficava aborrecido, teve uma tosse
seca, curta e inofensiva.
Notou que o amigo o olhou com
mais interesse. "Você está doente?" -perguntou. Não, não, o ex-menino estava bem, estava ótimo, a tosse era o abuso do cigarro,
prometia-se deixar de fumar, mas
tinha o caráter fraco, fumava dois
maços por dia.
À noite, logo após o jantar, o telefone tocou. Era o amigo que desejava notícias de sua saúde, se
melhorara da tosse. Ele nem mais
se lembrava de que tossira, agradeceu o interesse e, no dia seguinte, teve de agradecer outra vez, o
amigo queria saber se tudo estava
realmente bem.
Estava. Mas lembrou-se de que,
cinco anos antes, antes de entrar
na venerável instituição, ele sofrera um acidente, a lancha do sogro
emborcara na foz do rio Suruí,
onde costumava pescar badejos,
batera com a cabeça na hélice que
ainda rodava, sofrera traumatismo cerebral, ficou em coma durante duas semanas. Evidente
que os amigos mais chegados, a
família, os vizinhos, perguntavam por ele, de certa forma torciam para que ele resistisse e,
quando se recuperou, houve missa de ação de graças na igreja de
São José, os parentes, meia dúzia
de amigos, nada mais.
E agora um simples pigarro provocado pelo abuso do cigarro e tinha atrás de si, quase diariamente, o telefonema do novo amigo,
preocupadíssimo com a sua saúde, a sua tosse circunstancial. Para aumentar seu pasmo diante do
desvelo brutal que passou a persegui-lo ("Como vai sua tosse? Já
deixou o cigarro?"), ele recebeu a
carta de um sujeito que não era
seu amigo nem conhecido. Ficou
sabendo que a sua tosse se espalhara pelo mercado, havia agora
pessoas preocupadas com a sua
saúde.
Na rua, nos lugares que frequentava, havia sempre a inesperada pergunta: melhorara da gripe? Que logo se tornou pneumonia, inicialmente simples, depois
dupla e letal. Não adiantava confessar que estava bem, que continuava trabalhando normalmente. Por azar, teve de viajar, resolver um problema de partilha em
Barra Mansa, uma casa do avô
que o Estado havia tombado e
destombado, era para passar
uma semana, passou duas fora do
Rio.
Quando voltou, foi recebido como um Lázaro que irrompera do
túmulo, soltando ao vento sua
mortalha ensanguentada.
Como? Continuava vivo? As notícias que corriam na praça eram
de que seu estado se tornou terminal, irreversível, coisa de um dia a
mais ou a menos. Mais do que um
moribundo, era uma vaga.
Lembrou-se, então, do cartaz
na obra em construção de seu distante Lins de Vasconcelos. Lembrou-se da quitanda de dona Balbina, que colocava a cartolina
azul com o aviso: "Não há tomate". Bem, seria ridículo andar pelas ruas e pelos caminhos da cidade com um cartaz no peito e nas
costas: "Não há vaga". E passou a
usar umas pastilhas indianas que
ajudavam os fumantes que desejavam se livrar do cigarro.
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