São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ LITERÁRIO

O círculo do escritor


Em "Instabilidade Perpétua", Juliano Garcia Pessanha mescla gêneros para expressar terror existencial


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

COM UMA literatura que se nega a ser literatura, mas que justamente pela negação acaba fazendo literatura, Juliano Garcia Pessanha acaba de lançar "Instabilidade Perpétua", seu primeiro livro depois da trilogia composta por "Sabedoria do Nunca", "Ignorância do Sempre" e "Certeza do Agora".
A exemplo destes, ele alterna ensaio, ficção e poema em prosa para ir ruminando sua escrita que nos fala de uma inadequação fundamental em relação ao mundo, da recusa de um "universo inteiro hipernomeado de sentido, hipersaturado de narrações".
Os textos estão carregados de referências a filósofos ou escritores nos quais vê uma irmandade de exilados metafísicos (Heidegger, Blanchot, Kafka, Fernando Pessoa). E tais menções deslizam o tempo todo para lampejos autobiográficos, em que o encontro dessas leituras dá forma a suas obsessões, ao terror de se ver desde o nascimento inscrito numa rede de condutas pré-fabricadas e protocolos existenciais.
Não há nisso qualquer estratégia estilística e por isso muitos "insights" soam como arroubos retóricos contra a retórica: "Vejo de um lado todo o palácio de cristal da instituição literária e, do outro, a pequena fagulha do poema".
Da mesma maneira, a proposta de um "pensamento topológico" que descreva a passagem de uma vida convencional para o "buraco negro" (existências que habitam a tal "instabilidade perpétua" do título) faz pensar num breviário para uso próprio, escrito por um estudante de filosofia que precisa incorporar as aulas de Nietzsche a seu cotidiano angustiado.
E seria mesmo erudição de botequim com pompa poética, não fosse o fato de Pessanha, talvez a contragosto e sem intenções literárias, ter encontrado uma linguagem que transpira uma indefinível autenticidade, muito mais autêntica do que sua nostalgia do Ser, de extração heideggeriana. A criança que imita a dança do caranguejo na praia e é imediatamente diagnosticada ("Esse menino vai ser doido, ele é meio psicótico") ou o jovem que recita "Memórias do Subsolo" (Dostoiévski) para a namorada e a flagra caçoando de seu transe numa mesa de bar -são pequenos incidentes banais que, num autor torturado, desvelam os massacres cotidianos, o cruel recalque daquilo que escapa ao instituído.
Mesmo quando transforma Kafka numa "personagem", Pessanha projeta nele suas palavras, não desgruda da própria experiência, que no entanto é uma experiência de quem deseja reverter o parto realizado pelos coveiros da natalidade: "Meu corpo e minha dor sempre foram a cobaia dos meus pensamentos e os meus pensamentos sempre foram a cobaia de meu corpo e de minha dor. Esse é o círculo do escritor".


INSTABILIDADE PERPÉTUA

Autor: Juliano Garcia Pessanha
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 27 (136 págs.)
Avaliação: ótimo




Texto Anterior: Livros/Crítica/"Barroco Tropical": Excessos enfraquecem nova obra do angolano Agualusa
Próximo Texto: Crítica/ "CQC Especial África do Sul": Programa esquece que humor favorável deixa de ter graça
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.