São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

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Os "demônios" de Ian McEwan

Sai no Brasil volume que reúne os dois primeiros livros do autor britânico; o vencedor do prestigiado Booker Prize fala sobre seu começo povoado de demônios e faz texto exclusivo para a Folha

CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local

Ian McEwan já deixou para trás o apelido que lhe davam quando ele virava as costas: Ian McCabre. Aos 50 anos, o escritor britânico venceu no final de outubro o Booker Prize, o prêmio literário mais importante da Europa depois do Nobel, com um livro sem incestos, violência e loucura e com muita pompa e circunstância.
"Amsterdam", reconhece o escritor, não tem nenhuma relação com seus nove livros anteriores. Seria uma espécie de primo de quinto grau de seus dois primeiros livros, "Primeiro Amor, Último Sacramento" e "Entre Lençóis", que chegam às livrarias brasileiras na próxima semana unidos em um volume da editora Rocco.
Em entrevista à Folha, de sua casa em Oxford, o escritor contemporâneo inglês mais prestigiado da atualidade fez uma análise minuciosa dessas suas "primeiras histórias", escritas em um tempo em que "perseguia seus demônios", analisou a influência de Freud e Kafka em sua literatura inicial e descreveu uma experiência "extracorporal" no dia em que ganhou o Booker Prize.
A pedido da Folha, McEwan também escreveu seu primeiro texto depois do prêmio, no qual responde "Trinta Perguntas para Ian McEwan", que o ensaísta Arthur Nestrovski publicou no caderno Mais! no final do ano passado.
Com vocês, a parte mais McCabre de Ian McEwan.
Folha - O sr. disse certa vez que "poucas coisas na vida ficam melhores ao passo que se vai ficando mais velho. Escrever é uma das delas". Sob essa perspectiva, gostaria de saber o que o sr. pensa a respeito de seus dois primeiros livros, que estão sendo lançados aqui?
Ian McEwan -
Creio que o que melhora é o prazer em escrever. No tempo em que fiz esses dois livros, achava que escrever era muito, muito difícil. Era como se as palavras sangrassem sobre o papel. Eu escrevia muito devagar e, frequentemente, ficava encalhado no meio de um parágrafo, às vezes por semanas. Lembro perfeitamente a miséria dentro da qual me via nesses momentos. Ainda que ache algumas das histórias bastante divertidas, até hoje ainda não descobri nelas onde está, ou esteve, o prazer de escrever.
Folha - E o sr. ainda sente prazer ao ler essas primeiras histórias?
McEwan -
Já faz muitos anos que não as leio. É um tipo de texto que eu não escrevo mais. Mais do que isso, eles têm algo de selvagem que hoje acharia difícil de conseguir repetir. Eles têm um tipo de atrevimento, uma estranheza, que não está em minha ficção hoje.
Eu tinha na época que fiz esses livros um alto grau de impaciência com o modo de escrever dos autores contemporâneos britânicos. Queria algo menos documental, menos interessado em classes sociais. Estava muito influenciado pelos escritos de Franz Kafka (1883-1924) e de William Burroughs (1914-1997). Estava perseguindo meus demônios ou sendo perseguido por eles.
Eu fui um adolescente muito quieto. Escrevi esses contos no início dos meus 20 anos. Era como se estivesse nascendo. E, nesse processo, era como se todos os tipos de pessoas loucas falassem de mim por meio de meus escritos.
Folha - Como assim?
McEwan -
Começava escrevendo em primeira pessoa e logo me vinha a pergunta: "Quem é esse que está falando por mim?". Aos poucos, descobria que era um homem louco, às vezes alguém que cometera um crime terrível, que tinha um problema horrível. Fiquei espantado, mas continuei perseguindo lentamente essas figuras loucas dentro de mim.



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