São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

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ILUSTRADA, 40
Show reúne seres de vários planetas

Regina Agrella/Folha Imagem
Fred Zero Quatro, do Mundo Livre


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Parece que foi ontem. Parece que ontem Chico Science ainda estava vivo e a banda-irmã de sua Nação Zumbi, o Mundo Livre S/A, esbanjava amadorismo enquanto seu líder, Fred Zero Quatro, cantava e tocava num misto de preguiça e timidez. Pois anteontem, no show de aniversário da Ilustrada, era outro Mundo Livre em cena.
Há uns cinco anos, o mangue beat, movimento que Fred e Chico ergueram em Recife, era apenas um bebê. Hoje, ele nem existe mais, e o Mundo Livre, amadurecido precocemente, caiu no mundo e pôde encerrar a noite esbanjando, desta vez, profissionalismo.
O Olympia estava longe de lotado, mas foi a banda pernambucana a única a conseguir mobilizar uma massa considerável de público.
Acontece que as quatro outras bandas que se alternaram no palco -o gaúcho Júpiter Maçã, o pernambucano Otto, o paulista Funk Trunk e o mineiro Wilsom Sideral- eram de quase desconhecidos, caras que são hoje o que o mangue foi há mais de cinco anos.
Ninguém sabe o que vai acontecer com eles, e a platéia, tomada de jornalistas, não se animou -exceto a habitual fila do gargarejo- em lhes conceder o benefício da dúvida. Como jornalista gosta mais de falar do que de ouvir, o saguão lotou enquanto Sideral cantava às moscas.
Se ele, recém-contratado por uma grande gravadora, virar alguém mais famoso, muitos devem dizer "eu estava lá, no primeiro show em São Paulo". Não acredite.
Bem, mas o show houve. Começou com o marciano Júpiter Maçã, quando quase ninguém ainda havia chegado. O garoto, egresso dos 80 -quando era Flávio e tocava com TNT e Cascavelletes-, tem estrada à beça, mas a persona Júpiter ainda é bebê. E já crescidinho.
Parece que foi ontem que ele cantava desafinado como louco. Hoje, modula bem a voz e entrega um show profissional, pesado e virtuoso nas ações dele próprio (que pula da guitarra ao órgão, instrumento neomoderno que ele manipula com destreza), de um baterista figuraça e de um baixista de classe.
Projetando rock psicodélico com pitadas de Ira!, Júpiter se revela cada vez mais performer raro no Brasil, um popstar para os anos 60 -OK, se se considerar que a MPB anda lá pela década de 40, na melhor das hipóteses 1958, por aí.
Substituiu Júpiter Maçã no palco o venusiano Otto. Ele anda em estado de graça, feliz com a boa recepção do primeiro disco, "Samba pra Burro", e, entre um "Bob" e uma "Ciranda de Maluco" -sempre em versões longas, climáticas, menos drum'n'bass que no CD-, repetia, incrédulo: "É o meu terceiro show". Modéstia.
Ao Funk Trunk, que veio em seguida, não foi dada muita chance. O público se dispersou -afinal, a banda só tem um disquinho independente, insuficiente para ser considerada membro do mercado- enquanto o grupo expunha teses que liguem Alceu Valença ao rock pesado.
Imatura ainda, a banda ganhou pontos ao lembrar "Tempo no Tempo", versão de 1968 dos Mutantes para um bubble gum dos Mamas and Papas.
Era a vez do plutoniano Wilsom Sideral, envolto em capote prateado, munido de guitarra cibernética e se dizendo, ou melhor, se cantando "Wilsom do cabelo duro". Estava explicado: é chiclete, da grandeza pop do urso Xampu e do gênio jogado às traças Wilson Simonal -o próprio Sideral dá as senhas, as bandeiras.
O que resta da anarquia geral? A impressão de que seria impossível reunir essa gente toda na mesma mesa, ou no mesmo palco ao mesmo tempo. O mundo pop local, tão enfraquecido por tantas crises, parece mesmo um sistema de planetinhas em órbita, que nunca vão se encontrar uns com os outros.
O Brasil virou de ponta-cabeça nos últimos 40 anos, desde o advento da bossa velha, e hoje -é este o legado trágico do tropicalismo- essa coisa congraçadora que é o pop se transmutou em individualismo, só. Talvez seja um ciclo, e estão todos aí, engatinhando em círculos -ou rumo a algum lugar.



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