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"Chega-se a Marte, mas não ao semelhante'
da Redação
No discurso de recebimento do
Prêmio Nobel de Literatura, anteontem, o escritor português José
Saramago falou sobre os 50 anos
da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Na cerimônia, em Estocolmo
(Suécia), o autor de "Ensaio sobre
a Cegueira" e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" criticou a ação dos
governos, que, a seu ver, não vêm
cumprindo com a obrigação moral
nas questões relativas ao tema.
"Alguém não anda a cumprir o
seu dever. Não andam a cumpri-lo
os governos, porque não sabem,
porque não podem, ou porque não
querem", afirmou.
Mas disse também que os cidadãos não têm se ocupado de seus
próprios deveres. "Com a mesma
veemência com que reivindicamos
direitos, reivindiquemos também
o dever dos nossos deveres. Talvez
o mundo possa tornar-se um pouco melhor."
O texto, publicado abaixo na íntegra, mantém a grafia do português adotada em Portugal.
˛
JOSÉ SARAMAGO
˛
Cumpriram-se hoje exactamente
50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa
quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o
interesse público por esta questão
comece a diminuir já a partir de
amanhã. Nada tenho contra esses
actos comemorativos, eu próprio
contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma
vez que a data o pede e a ocasião
não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas
mais.
Neste meio século não parece
que os governos tenham feito pelos
direitos humanos tudo aquilo a
que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se,
as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra.
A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos
a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de
pessoas pela fome. Chega-se mais
facilmente a Marte do que ao nosso
próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o
seu dever. Não andam a cumpri-lo
os governos, porque não sabem,
porque não podem, ou porque não
querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas
multinacionais e pluricontinentais
cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o
que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a
cumprir o seu dever os cidadãos
que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão
subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que
não é de esperar que os governos
façam nos próximos 50 anos o que
não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a
mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos
também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.
Não esqueci os agradecimentos.
Em Frankfurt, no dia 8 de outubro,
as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio
Nobel da Literatura. Agradeci
igualmente aos meus editores, aos
meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E
agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa,
aos do passado e aos de hoje: é por
eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a
eles se veio juntar. Disse naquele
dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam portanto.
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