São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA
Primeiros livros trazem a cara suja dos anos 75/85

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Certas pessoas tentam vencer fantasmas internos esfaqueando alguém, espancando crianças ou cometendo suicídio. Outras escrevem livros. É o caso, claramente, do Ian McEwan jovem, estreante, cujos primeiros dois livros, de contos, saem agora reunidos em um volume único.
"Primeiro Amor, Último Sacramento", de 75, é, de fato, uma explosão. McEwan tinha então 27 anos. As oito histórias do livro têm as mesmas características: sarcasmo, perversão, sexualidade árida, amoralidade. Seus protagonistas, na maioria jovens, adolescentes, estão em situação social e familiar precária, zanzam perdidos por becos londrinos ou por uma Inglaterra interiorana distante do glamour da capital.
Em "Conversa com um Homem-Armário", por exemplo, com explícita aderência ao universo de Kafka, um jovem de 21 anos deixa um reformatório e consegue emprego de faxineiro num hotel. Ali, uma das "brincadeiras" suaves que lhe impinge o cozinheiro-chefe é deixá-lo trancado horas dentro do forno.
Conta o narrador: "Não conseguia acreditar primeiro, pensei que estivesse imaginando coisas. Cara de Postema acendera o forno no nível mais baixo. Dentro em breve ficou quente demais para que eu sentasse e tive de me agachar. Eu podia sentir o calor queimando através dos meus sapatos, queimando meu rosto e minhas narinas. O suor escorria de mim e cada respirada ressecava minha garganta"; assim em diante, num clima literalmente asfixiante.
McEwan também não economiza crueza ao tematizar o incesto como possível meio de iniciação sexual.
Diz o narrador em "Prata da Casa": "Na hora em que eu cheguei ao alto da escada, entretanto, o sangue tendo refluído do cérebro para a virilha, podendo-se literalmente dizer da razão para a sensibilidade, na hora em que recuperava o fôlego no alto da escada e fechava a mão úmida em torno da maçaneta do quarto de dormir, decidi estuprar minha irmã". Haja mesmo fôlego.
No conto que dá título ao livro, um casal jovem se afasta do mundo numa casa isolada. Fazem sexo aos raios do sol sobre a mesa da sala etc. Desde o início de sua paixão, porém, um ruído estranho, dentro de uma parede, parece assombrá-los; o conto termina com uma incrivelmente bem narrada caça, vitoriosa, a uma ratazana grávida.
Com personagens já adultos, na maioria, um tanto mais contido em explosividade, mas envolto na mesma atmosfera de desenraizamento, "Entre Lençóis", de 78, permite-se até mesmo laivos de lirismo. Embora, ressalte-se, em McEwan o lirismo tenha uma tonalidade bem especial.
Isso está no próprio conto do título, em que um homem (obviamente separado), ao mesmo tempo em que amorosamente tenta sublimar a atração sexual que sentiu pela filha de 14 anos, procura deglutir com dificuldade a quase-certeza de que ela, na verdade, tem já uma namorada.
Não se pense existir aqui um manual da perversão. McEwan conhece psicanálise. Tudo é muito sugerido, com direito a clima de suspense até. O autor vai fundo no egoísmo e na falta de perspectivas de seus personagens. E tudo se encaixa na atmosfera comportamental decadente da época.
Com efeito, não é possível dissociar estes dois livros iniciais do universo de marginália pós-contracultura de um Jim Jarmusch, por exemplo, ou dos enredos de Paul Auster (incluído o filme "Cortina de Fumaça"), nem mesmo dos sarcasmos nauseabundos de Martin Amis.
Sem ser datado, pois seus temas estão mais do que em voga, "Primeiro Amor..." tem, na sua composição, a cara -suja- dos anos 75/85. Vale a pena, para o leitor, defrontar-se com ela, desde que se prepare, ele também, para sujar a sua própria cara.
˛


Livro: Primeiro Amor, Último Sacramento
Autor: Ian McEwan
Lançamento: Rocco
Quanto: R$ 30 (308 págs.)





Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.