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CRÍTICA
Primeiros livros trazem a cara suja dos anos 75/85
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Certas pessoas tentam vencer
fantasmas internos esfaqueando
alguém, espancando crianças ou
cometendo suicídio. Outras escrevem livros. É o caso, claramente,
do Ian McEwan jovem, estreante,
cujos primeiros dois livros, de contos, saem agora reunidos em um
volume único.
"Primeiro Amor, Último Sacramento", de 75, é, de fato, uma explosão. McEwan tinha então 27
anos. As oito histórias do livro têm
as mesmas características: sarcasmo, perversão, sexualidade árida,
amoralidade. Seus protagonistas,
na maioria jovens, adolescentes,
estão em situação social e familiar
precária, zanzam perdidos por becos londrinos ou por uma Inglaterra interiorana distante do glamour
da capital.
Em "Conversa com um Homem-Armário", por exemplo, com explícita aderência ao universo de
Kafka, um jovem de 21 anos deixa
um reformatório e consegue emprego de faxineiro num hotel. Ali,
uma das "brincadeiras" suaves que
lhe impinge o cozinheiro-chefe é
deixá-lo trancado horas dentro do
forno.
Conta o narrador: "Não conseguia acreditar primeiro, pensei que
estivesse imaginando coisas. Cara
de Postema acendera o forno no
nível mais baixo. Dentro em breve
ficou quente demais para que eu
sentasse e tive de me agachar. Eu
podia sentir o calor queimando
através dos meus sapatos, queimando meu rosto e minhas narinas. O suor escorria de mim e cada
respirada ressecava minha garganta"; assim em diante, num clima literalmente asfixiante.
McEwan também não economiza crueza ao tematizar o incesto
como possível meio de iniciação
sexual.
Diz o narrador em "Prata da Casa": "Na hora em que eu cheguei ao
alto da escada, entretanto, o sangue tendo refluído do cérebro para
a virilha, podendo-se literalmente
dizer da razão para a sensibilidade,
na hora em que recuperava o fôlego no alto da escada e fechava a
mão úmida em torno da maçaneta
do quarto de dormir, decidi estuprar minha irmã". Haja mesmo fôlego.
No conto que dá título ao livro,
um casal jovem se afasta do mundo
numa casa isolada. Fazem sexo aos
raios do sol sobre a mesa da sala
etc. Desde o início de sua paixão,
porém, um ruído estranho, dentro
de uma parede, parece assombrá-los; o conto termina com uma incrivelmente bem narrada caça, vitoriosa, a uma ratazana grávida.
Com personagens já adultos, na
maioria, um tanto mais contido
em explosividade, mas envolto na
mesma atmosfera de desenraizamento, "Entre Lençóis", de 78, permite-se até mesmo laivos de lirismo. Embora, ressalte-se, em McEwan o lirismo tenha uma tonalidade bem especial.
Isso está no próprio conto do título, em que um homem (obviamente separado), ao mesmo tempo em que amorosamente tenta
sublimar a atração sexual que sentiu pela filha de 14 anos, procura
deglutir com dificuldade a quase-certeza de que ela, na verdade, tem
já uma namorada.
Não se pense existir aqui um manual da perversão. McEwan conhece psicanálise. Tudo é muito
sugerido, com direito a clima de
suspense até. O autor vai fundo no
egoísmo e na falta de perspectivas
de seus personagens. E tudo se encaixa na atmosfera comportamental decadente da época.
Com efeito, não é possível dissociar estes dois livros iniciais do
universo de marginália pós-contracultura de um Jim Jarmusch,
por exemplo, ou dos enredos de
Paul Auster (incluído o filme "Cortina de Fumaça"), nem mesmo dos
sarcasmos nauseabundos de Martin Amis.
Sem ser datado, pois seus temas
estão mais do que em voga, "Primeiro Amor..." tem, na sua composição, a cara -suja- dos anos
75/85. Vale a pena, para o leitor,
defrontar-se com ela, desde que se
prepare, ele também, para sujar a
sua própria cara.
˛
Livro: Primeiro Amor, Último Sacramento
Autor: Ian McEwan
Lançamento: Rocco
Quanto: R$ 30 (308 págs.)
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