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CONTARDO CALLIGARIS
No ano novo, prometo parecer sincero e autêntico
Eu ficaria satisfeito se recebesse
um dólar por cada criança americana que abriu sua lista de intenções para o ano novo com a promessa de nunca (mais) mentir.
Mentir, nos EUA, é o pecado
fundamental. Melhor encarar as
consequências de uma verdade
incômoda do que falar falsidades.
O presidente Clinton que o diga:
os americanos preferem lhe perdoar as escapadelas com Mônica
Lewinski a suas tentativas de
ocultá-las.
De um ponto de vista europeu e
latino-americano, as mentiras de
um "gentleman", por exemplo,
devem ser consideradas com condescendência, pois a honra de
uma dama passa antes das exigências de sinceridade de seu cavalheiro. Desse mesmo ponto de
vista, há mil fidelidades que poderiam anteceder o compromisso
com a verdade. Mentir visando o
bem não é nenhum paradoxo para nós.
Outro exemplo: a significação
das cartas de recomendação. No
Brasil ou na Europa, elas manifestam sobretudo o apoio de quem
recomenda: "Por respeito a mim,
trate bem o portador da presente". Nos EUA, a carta de recomendação é escondida do recomendado para que nada impeça quem
recomenda de falar verdades desagradáveis. Ou seja, pediu recomendação: leva a verdade. A carta vale portanto como atestado
verídico, não como manifestação
de apoio. Aliás, é mais fácil pedir
dinheiro emprestado a um amigo
americano do que lhe pedir para
mentir.
Em contraponto, a sinceridade
se torna a virtude americana originária. George Washington, herói fundador, poderia ser celebrado por uma série de razões: coragem, persistência, honestidade
etc. Na lenda, fica como o homem
que nunca disse uma mentira,
nem quando criança. É engraçado, pois nos terríveis invernos da
guerra de independência, se Washington não tivesse mentido a
seus homens sobre salários, perspectivas da campanha ou mesmo
previsões do tempo, provavelmente não sobraria ninguém para discutir com os ingleses.
Resumindo, nos EUA, mentir é
um pecado a priori e a sinceridade é uma virtude abstrata.
Há uma explicação clássica para isso: numa sociedade individualista realizada e composta por
agentes sociais iguais em princípio e direito- a mentira produziria uma confusão social intolerável. Se as pessoas não se definem
por nascença, sangue etc., sinceridade e autenticidade se tornam
valores cruciais, pois sem eles
nunca saberíamos direito com
quem estamos lidando. Quanto
mais uma sociedade for moderna,
tanto mais a sinceridade e a autenticidade serão suas obrigações
morais.
É isso que, anos atrás, me lembro de ter entendido, lendo "Sinceridade e Autenticidade", de Lionel Trilling, o grande crítico americano. Ser sincero e autêntico é
uma obrigação cultural moderna
justamente porque nossa história
pessoal nos define mais do que
nossa estirpe ou nossas heranças.
Nós nos inventamos e os outros
nos conhecem porque lhes apresentamos essa nossa invenção,
portanto, torna-se crucial não
mentir. Isso vale da conversa fiada até o amor, passando pelo
mercado do trabalho: se consigo
meu emprego pelo que eu fiz e sei
fazer e não por ser amigo do marquês, não posso mentir, devo ser
eu mesmo.
Mas aqui surgem alguns pepinos. Pois o que é ser "eu mesmo",
ser autêntico, se por nascença e
natureza não somos mais nada? E
o que é se apresentar sinceramente aos outros senão levá-los a acreditar na imagem que inventamos
para nós?
Nessa altura, é útil parar duas
horas. O tempo de assistir ao "Talentoso Sr. Ripley", a nova adaptação do romance de Patricia
Highsmith por Anthony Minghella (diretor de "O Paciente Inglês"). Ripley (o extraordinário
Matt Damon) é o herói que prefere ser um falso alguém do que um
verdadeiro ninguém. Nessa empreitada, ele não recua perante
nada. Ora, sem entrar em detalhes, o filme é imperdível sobretudo pela experiência que proporciona: ele acua o espectador na inconfortável posição de torcer angustiadamente por Ripley, o impostor, embora ele nos indigne
moralmente.
Acontece que Ripley é inevitavelmente dos nossos. Sua aventura lembra que, por mais que prezemos autenticidade e sinceridade, ser alguém em nosso mundo é
sempre um jogo de aparências e
por isso mesmo de imposturas. É o
paradoxo moderno: devemos e
queremos ser autênticos e sinceros
e, ao mesmo tempo, nosso ser social se resume em fazer os outros
acreditarem em nossa aparência.
Em suma, dispúnhamos de uma
explicação sociológica pela qual a
sinceridade é um valor indispensável ao funcionamento da sociedade moderna. Talvez uma outra
interpretação seja mais bem-vinda, embora mais complexa: sinceridade e autenticidade se tornam
valores cruciais justamente porque, na modernidade, a impostura é erigida em sistema social. É
proibido mentir não porque nossa
sociedade é construída na confiança, mas porque ela é organizada na mentira. E a maior mentira consiste em afirmar que queremos falar a verdade. Em outras
palavras, somos mentirosos demais para não venerar a sinceridade.
De qualquer forma, para este
ano novo, prometo parecer cada
vez mais autêntico e sincero.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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