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CARLOS HEITOR CONY
O pesadelo de ser muito qualquer coisa
No princípio, o cavalo branco
corta o espaço. Tem asas. De
seus olhos saem dois focos de luz.
Depois é o mar, sem cor, sólido,
como um deserto. Ela caminha
sem direção, nem há direção alguma a tomar: tudo é oco, o universo é côncavo à sua volta. De repente, esse imenso vazio se enche
de água. Mas ela não está no mar
nem no vazio. Está nadando na
piscina de sua casa. Sempre que
entra naquela água azul, sente
(ou imagina sentir) um cheiro
antigo do perfume que usava
quando inauguraram a casa, um
vidrinho de "Un Air Embaumé"
que caiu de sua bolsa e derramou
na piscina um gosto também antigo, mais gosto do que cheiro.
Veste um biquíni comportado,
que às vezes lhe parece azul escuro, às vezes preto. Dá braçadas
longas, se sente feliz. Mergulha
até o fundo e se admira de estar
em boa forma: na realidade, nunca soube mergulhar. Mas sempre
quando sonha pode fazer coisas
impossíveis, como tocar piano,
subir em árvores. Tampouco se
cansa. Podia nadar o dia inteiro,
vencer o mundo que cabe dentro
de sua piscina. De repente, não está mais de biquíni, mas de vestido
de noite, branco, com colares e
cinto, um cinto esquisito, que parece uma corda de monja. O que
mais a incomoda são os sapatos:
estão cheios de terra vermelha.
Ela procura descalçá-los. Em torno dos pés, a água começa a ficar
escura e pastosa. Pouco a pouco, a
piscina está cheia de sangue e ela
luta para permanecer à tona.
Olha para cima e vê o marido numa das janelas da casa. Ele observa a sua luta contra a morte. Ela
tenta gritar, mas o sangue -ou a
água- impede-lhe o grito. Cansada, os braços pesados, se entrega. O marido espia com curiosidade, parece satisfeito, não faz
nada para salvá-la. Alguma coisa
puxa o seu corpo para baixo, e ela
afunda, boca muito aberta, olhos
escancarados, inchados, como se
estivessem podres. Submersa, sente uma pressão cada vez maior
nos olhos, pior do que o grito que
não sai da garganta. Tenta arrancar os olhos, como duas bolas
de gude, jogá-los fora. A água-sangue penetrará em suas órbitas. A garganta consegue gemer.
Com um golpe violento das mãos,
tira a máscara do rosto.
E acorda. Está suada, como se
tivesse febre muito alta. Conseguiu arrancar a máscara preta
que vedava seus olhos -há muito só consegue dormir apelando
para aquele recurso. E para os
comprimidos que toma todas as
noites. As cortinas do quarto estão fechadas. Os travesseiros, no
chão. O copo de água ficou na
mesinha de cabeceira, junto ao
telefone. Tem um resto ainda, ela
bebeu um pouco antes de dormir,
para descer os dois comprimidos
que a tranquilizam.
Bebe até o fim, a água está morna, tem quase o mesmo gosto do
sangue que bebera durante o sono.
Apanha o telefone, os dedos deslizam nas teclas e ela forma um
número. Lúcia atende:
- Dona Sílvia?
- Por favor, Marcelo chegou?
O marido atende na extensão:
- Marcelo... Outra vez o sonho... Foi horrível...
- Calma, Sílvia... Você está
bem?
- A piscina... Igualzinho aos
outros... E você na janela, olhando... Parecia satisfeito com a minha morte...
- Sílvia... Já passou, tome
aquele remédio...
- Não adianta, não adianta!
Você sabe que não adianta remédio nenhum...
- Hoje é dia do médico?
Sílvia passa a mão pelos cabelos
caídos em seu rosto. Procura pensar: que dia é hoje? Que médico?
Acaba admitindo:
- Sim, acho que é... Se não for,
telefono, peço uma consulta...
Não agüento mais!
- Fique calma, Sílvia. Tudo
tem jeito... Você ficará boa...
Ela desliga. Esperava ouvir exatamente aquilo. Mais uma vez, o
marido fora perfeito: dissera o
que ela esperava. Estranhamente,
aquela constatação a confortava.
Sim, o mundo continuava nos eixos, estava acordada, não havia
sangue na piscina, ela não se afogava. Marcelo pedia que ela tivesse calma, que tudo tinha jeito.
O problema -o seu problema- era esse justamente. Tudo
tinha jeito, tudo voltava a ser como antes, a casa, o marido, a vida
e sobretudo ela própria. No fundo, gostaria que o sonho não tivesse terminado, que ela não voltasse do pesadelo, fosse até o fim e
terminasse tudo, o pior já havia
passado, a água se transformando em sangue, a sufocação, os
olhos arrancados. O que viesse
depois só poderia ser lucro.
Bem melhor do que se reencontrar tal como na véspera, na véspera da véspera, na véspera de todos os seus dias, o mesmo corpo, a
mesma casa, o mesmo marido e
ela mesma, diante do espelho,
examinando o seu cansaço.
Cansaço de quê? -perguntara-lhe o médico. Todos perguntavam
a mesma coisa, o que estaria errado com ela, se tivesse de viver
uma outra vida, certamente viveria a mesma, a mesma casa, o
mesmo marido, tudo o mesmo,
ela própria a mesma. Mas menos.
Ninguém entendia esse "menos". A fadiga de ser muito ela
mesma, todos os dias, todas as horas. Pelo menos nos pesadelos ela
se tornava diferente, a sensação
de morrer sufocada em sangue
era preferível a continuar sendo
ela mesma.
Não adiantava marcar médico,
pedir emergência, não havia
emergência alguma, não havia
problema algum. Só havia ela.
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