São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O pesadelo de ser muito qualquer coisa

No princípio, o cavalo branco corta o espaço. Tem asas. De seus olhos saem dois focos de luz. Depois é o mar, sem cor, sólido, como um deserto. Ela caminha sem direção, nem há direção alguma a tomar: tudo é oco, o universo é côncavo à sua volta. De repente, esse imenso vazio se enche de água. Mas ela não está no mar nem no vazio. Está nadando na piscina de sua casa. Sempre que entra naquela água azul, sente (ou imagina sentir) um cheiro antigo do perfume que usava quando inauguraram a casa, um vidrinho de "Un Air Embaumé" que caiu de sua bolsa e derramou na piscina um gosto também antigo, mais gosto do que cheiro. Veste um biquíni comportado, que às vezes lhe parece azul escuro, às vezes preto. Dá braçadas longas, se sente feliz. Mergulha até o fundo e se admira de estar em boa forma: na realidade, nunca soube mergulhar. Mas sempre quando sonha pode fazer coisas impossíveis, como tocar piano, subir em árvores. Tampouco se cansa. Podia nadar o dia inteiro, vencer o mundo que cabe dentro de sua piscina. De repente, não está mais de biquíni, mas de vestido de noite, branco, com colares e cinto, um cinto esquisito, que parece uma corda de monja. O que mais a incomoda são os sapatos: estão cheios de terra vermelha. Ela procura descalçá-los. Em torno dos pés, a água começa a ficar escura e pastosa. Pouco a pouco, a piscina está cheia de sangue e ela luta para permanecer à tona. Olha para cima e vê o marido numa das janelas da casa. Ele observa a sua luta contra a morte. Ela tenta gritar, mas o sangue -ou a água- impede-lhe o grito. Cansada, os braços pesados, se entrega. O marido espia com curiosidade, parece satisfeito, não faz nada para salvá-la. Alguma coisa puxa o seu corpo para baixo, e ela afunda, boca muito aberta, olhos escancarados, inchados, como se estivessem podres. Submersa, sente uma pressão cada vez maior nos olhos, pior do que o grito que não sai da garganta. Tenta arrancar os olhos, como duas bolas de gude, jogá-los fora. A água-sangue penetrará em suas órbitas. A garganta consegue gemer. Com um golpe violento das mãos, tira a máscara do rosto.
E acorda. Está suada, como se tivesse febre muito alta. Conseguiu arrancar a máscara preta que vedava seus olhos -há muito só consegue dormir apelando para aquele recurso. E para os comprimidos que toma todas as noites. As cortinas do quarto estão fechadas. Os travesseiros, no chão. O copo de água ficou na mesinha de cabeceira, junto ao telefone. Tem um resto ainda, ela bebeu um pouco antes de dormir, para descer os dois comprimidos que a tranquilizam.
Bebe até o fim, a água está morna, tem quase o mesmo gosto do sangue que bebera durante o sono.
Apanha o telefone, os dedos deslizam nas teclas e ela forma um número. Lúcia atende:
- Dona Sílvia?
- Por favor, Marcelo chegou?
O marido atende na extensão:
- Marcelo... Outra vez o sonho... Foi horrível...
- Calma, Sílvia... Você está bem?
- A piscina... Igualzinho aos outros... E você na janela, olhando... Parecia satisfeito com a minha morte...
- Sílvia... Já passou, tome aquele remédio...
- Não adianta, não adianta! Você sabe que não adianta remédio nenhum...
- Hoje é dia do médico?
Sílvia passa a mão pelos cabelos caídos em seu rosto. Procura pensar: que dia é hoje? Que médico? Acaba admitindo:
- Sim, acho que é... Se não for, telefono, peço uma consulta... Não agüento mais!
- Fique calma, Sílvia. Tudo tem jeito... Você ficará boa...
Ela desliga. Esperava ouvir exatamente aquilo. Mais uma vez, o marido fora perfeito: dissera o que ela esperava. Estranhamente, aquela constatação a confortava. Sim, o mundo continuava nos eixos, estava acordada, não havia sangue na piscina, ela não se afogava. Marcelo pedia que ela tivesse calma, que tudo tinha jeito.
O problema -o seu problema- era esse justamente. Tudo tinha jeito, tudo voltava a ser como antes, a casa, o marido, a vida e sobretudo ela própria. No fundo, gostaria que o sonho não tivesse terminado, que ela não voltasse do pesadelo, fosse até o fim e terminasse tudo, o pior já havia passado, a água se transformando em sangue, a sufocação, os olhos arrancados. O que viesse depois só poderia ser lucro.
Bem melhor do que se reencontrar tal como na véspera, na véspera da véspera, na véspera de todos os seus dias, o mesmo corpo, a mesma casa, o mesmo marido e ela mesma, diante do espelho, examinando o seu cansaço.
Cansaço de quê? -perguntara-lhe o médico. Todos perguntavam a mesma coisa, o que estaria errado com ela, se tivesse de viver uma outra vida, certamente viveria a mesma, a mesma casa, o mesmo marido, tudo o mesmo, ela própria a mesma. Mas menos.
Ninguém entendia esse "menos". A fadiga de ser muito ela mesma, todos os dias, todas as horas. Pelo menos nos pesadelos ela se tornava diferente, a sensação de morrer sufocada em sangue era preferível a continuar sendo ela mesma.
Não adiantava marcar médico, pedir emergência, não havia emergência alguma, não havia problema algum. Só havia ela.

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