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FERREIRA GULLAR
Ecos do Carnaval
Em pleno domingo de Carnaval, um jornal carioca publicou uma reportagem mostrando
como os jurados que julgam os
desfiles das escolas de samba muitas vezes decidem aleatoriamente
e outras vezes nem vêem direito o
que estão julgando.
Esse é um problema insolúvel
que de longa data atormenta os
responsáveis pelo desfile e as diretorias das escolas. Lembro-me de
uma polêmica surgida há muitos
anos porque um jurado deu nota
dez a uma dupla de mestre-sala e
porta-bandeira que havia, em
dado momento, derrapado no
chão da avenida. O jurado alegou: "Diante de mim, eles dançaram muito bem".
Por essa e outras é que se decidiu ter que haver mais de um jurado para cada quesito e que fossem postos em pontos diferentes
da passarela. Ainda assim, os problemas se mantiveram.
Num desses anos, Leon Hirszman, que estava como jurado,
deu uma nota baixíssima à Beija-Flor de Nilópolis. Anísio, o conhecido bicheiro dono da escola, acusou o cineasta de ter usado de
má-fé e deixou no ar uma velada
ameaça. Para neutralizar a disparidade das notas, estabeleceu-se que a nota mais alta e a mais
baixa seriam descartadas no
cômputo geral. A verdade é que
sempre pairava a suspeita de que
alguns jurados votavam para beneficiar a sua escola preferida ou
o faziam por se venderem...
Eu, que fiz parte de um júri
muitos anos atrás, fui acusado de
ter beneficiado a Mangueira por
ser mangueirense. A acusação
caiu no vazio porque todo mundo
sabia -menos o caluniador-
que minha escola do peito era o
Salgueiro. Lembram-se de uma
vez que o jurado Chico Buarque
foi flagrado pela televisão dormindo enquanto uma escola passava?
Mas, quando se trata de "ganhar o Carnaval", motivo para
briga é o que não falta. Houve
uma época em que, na hora de
apurar os votos, os bicheiros donos de diferentes escolas chegavam ali acompanhados de capangas armados. A tensão ia aumentando à medida que a apuração
se aproximava do final e esta ou
aquela escola perdia pontos. Certa vez houve tiros e feridos. A apuração passou a ser feita no quartel
da Polícia Militar e, mesmo assim, todo mundo era revistado
pelo sentinela ao entrar.
A democracia nunca foi o traço
predominante das escolas de
samba. Durante muitos anos, a
Portela foi presidida por Natal,
um bicheiro que tinha um só braço e, mesmo assim, a dirigia com
mão-de-ferro. Sua paixão pelo jogo do bicho era tamanha que ele
mandou decorar a sala de sua casa com os bichos que compunham
o jogo: no alto da parede, ali estavam, pela ordem da numeração,
todos eles, do avestruz (número 1)
à vaca (número 25), passando por
cabra, coelho, camelo, macaco,
elefante, veado...
Com a importância crescente
das escolas de samba no Carnaval carioca e, particularmente, a
da Portela, campeã de sucessivos
desfiles, um grupo de portelenses,
membros da diretoria, chegou à
conclusão de que era preciso reduzir o mandonismo de Natal
que, aferrado ao passado, à tradição, impedia a escola de acompanhar as inovações introduzidas
pelo Salgueiro e que outras escolas estavam adotando. O problema era botar o guizo no pescoço
do gato.
Depois de muito discutirem, os
inconfidentes chegaram à conclusão de que deveriam deixar Natal
como presidente de honra e eleger
uma diretoria que de fato dirigiria a escola. Convencidos de que
esta era uma proposta razoável,
marcaram uma conversa com o
bicheiro e apresentaram-lhe sua
proposta. Natal ouviu tudo sem
nada demonstrar, com a mesma
expressão enigmática que sempre
estampava no rosto. Ao fim da
exposição, perguntou quando e
onde seria a eleição da diretoria.
Ouvida a resposta, declarou:
- Estarei lá.
Daí a duas semanas, num sábado à noite, na casa de um deles,
houve a reunião a que Natal não
compareceu. Tampouco houve a
eleição, já que, em dado momento, se ouviram rumores estranhos
lá fora e, em seguida, disparos de
armas de fogo. As balas atingiam
as paredes e os telhado da casa levando todos a se jogarem no
chão, apavorados, até que terminou o tiroteio. Entenderam o recado e desistiram de democratizar a Portela.
Dias depois, no ensaio da escola, voltaram a se encontrar com
Natal que, sorridente, perguntava
a cada um deles:
- Como foi a reunião? Correu
tudo bem?
- Mudamos de idéia.
- Ah, estou vendo que vocês
têm juízo!
Passados alguns anos, a Portela
se dividiu, e os dissidentes saíram
para formar uma nova escola que
ganhou o nome de Tradição e
existe até hoje. Naquela ocasião,
Paulinho da Viola -portelense
doente e autor do famoso samba
"Foi um Rio que Passou em Minha Vida"- também se afastou
da escola.
A verdade é que escola de samba e jogo do bicho sempre estiveram juntos e por razões óbvias.
Conta Sérgio Cabral que no enterro de uma figura muito querida numa das escolas, em meio ao
pranto geral, uma voz sussurrada
perguntou a alguém que estava
mais perto da cova: "Qual é o número da sepultura?". E o outro,
entre lágrimas e soluços, respondeu: "68 com 60... macaco com jacaré...".
No dia seguinte -segundo contam- quem apostou nessas dezenas ganhou uma bolada.
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