São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Ecos do Carnaval

Em pleno domingo de Carnaval, um jornal carioca publicou uma reportagem mostrando como os jurados que julgam os desfiles das escolas de samba muitas vezes decidem aleatoriamente e outras vezes nem vêem direito o que estão julgando.
Esse é um problema insolúvel que de longa data atormenta os responsáveis pelo desfile e as diretorias das escolas. Lembro-me de uma polêmica surgida há muitos anos porque um jurado deu nota dez a uma dupla de mestre-sala e porta-bandeira que havia, em dado momento, derrapado no chão da avenida. O jurado alegou: "Diante de mim, eles dançaram muito bem".
Por essa e outras é que se decidiu ter que haver mais de um jurado para cada quesito e que fossem postos em pontos diferentes da passarela. Ainda assim, os problemas se mantiveram.
Num desses anos, Leon Hirszman, que estava como jurado, deu uma nota baixíssima à Beija-Flor de Nilópolis. Anísio, o conhecido bicheiro dono da escola, acusou o cineasta de ter usado de má-fé e deixou no ar uma velada ameaça. Para neutralizar a disparidade das notas, estabeleceu-se que a nota mais alta e a mais baixa seriam descartadas no cômputo geral. A verdade é que sempre pairava a suspeita de que alguns jurados votavam para beneficiar a sua escola preferida ou o faziam por se venderem...
Eu, que fiz parte de um júri muitos anos atrás, fui acusado de ter beneficiado a Mangueira por ser mangueirense. A acusação caiu no vazio porque todo mundo sabia -menos o caluniador- que minha escola do peito era o Salgueiro. Lembram-se de uma vez que o jurado Chico Buarque foi flagrado pela televisão dormindo enquanto uma escola passava?
Mas, quando se trata de "ganhar o Carnaval", motivo para briga é o que não falta. Houve uma época em que, na hora de apurar os votos, os bicheiros donos de diferentes escolas chegavam ali acompanhados de capangas armados. A tensão ia aumentando à medida que a apuração se aproximava do final e esta ou aquela escola perdia pontos. Certa vez houve tiros e feridos. A apuração passou a ser feita no quartel da Polícia Militar e, mesmo assim, todo mundo era revistado pelo sentinela ao entrar.
A democracia nunca foi o traço predominante das escolas de samba. Durante muitos anos, a Portela foi presidida por Natal, um bicheiro que tinha um só braço e, mesmo assim, a dirigia com mão-de-ferro. Sua paixão pelo jogo do bicho era tamanha que ele mandou decorar a sala de sua casa com os bichos que compunham o jogo: no alto da parede, ali estavam, pela ordem da numeração, todos eles, do avestruz (número 1) à vaca (número 25), passando por cabra, coelho, camelo, macaco, elefante, veado...
Com a importância crescente das escolas de samba no Carnaval carioca e, particularmente, a da Portela, campeã de sucessivos desfiles, um grupo de portelenses, membros da diretoria, chegou à conclusão de que era preciso reduzir o mandonismo de Natal que, aferrado ao passado, à tradição, impedia a escola de acompanhar as inovações introduzidas pelo Salgueiro e que outras escolas estavam adotando. O problema era botar o guizo no pescoço do gato.
Depois de muito discutirem, os inconfidentes chegaram à conclusão de que deveriam deixar Natal como presidente de honra e eleger uma diretoria que de fato dirigiria a escola. Convencidos de que esta era uma proposta razoável, marcaram uma conversa com o bicheiro e apresentaram-lhe sua proposta. Natal ouviu tudo sem nada demonstrar, com a mesma expressão enigmática que sempre estampava no rosto. Ao fim da exposição, perguntou quando e onde seria a eleição da diretoria. Ouvida a resposta, declarou:
- Estarei lá.
Daí a duas semanas, num sábado à noite, na casa de um deles, houve a reunião a que Natal não compareceu. Tampouco houve a eleição, já que, em dado momento, se ouviram rumores estranhos lá fora e, em seguida, disparos de armas de fogo. As balas atingiam as paredes e os telhado da casa levando todos a se jogarem no chão, apavorados, até que terminou o tiroteio. Entenderam o recado e desistiram de democratizar a Portela.
Dias depois, no ensaio da escola, voltaram a se encontrar com Natal que, sorridente, perguntava a cada um deles:
- Como foi a reunião? Correu tudo bem?
- Mudamos de idéia.
- Ah, estou vendo que vocês têm juízo!
Passados alguns anos, a Portela se dividiu, e os dissidentes saíram para formar uma nova escola que ganhou o nome de Tradição e existe até hoje. Naquela ocasião, Paulinho da Viola -portelense doente e autor do famoso samba "Foi um Rio que Passou em Minha Vida"- também se afastou da escola.
A verdade é que escola de samba e jogo do bicho sempre estiveram juntos e por razões óbvias. Conta Sérgio Cabral que no enterro de uma figura muito querida numa das escolas, em meio ao pranto geral, uma voz sussurrada perguntou a alguém que estava mais perto da cova: "Qual é o número da sepultura?". E o outro, entre lágrimas e soluços, respondeu: "68 com 60... macaco com jacaré...".
No dia seguinte -segundo contam- quem apostou nessas dezenas ganhou uma bolada.


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