São Paulo, sexta, 13 de fevereiro de 1998

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Manoel de Oliveira filma seu adeus a Portugal

CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Especiais

A cada último filme de Manoel de Oliveira, o espectador reverente vai assisti-lo como se estivesse indo para uma cerimônia de adeus. Afinal, trata-se do único cineasta em atividade quase ao completar 90 anos de idade.
De fato, "Viagem ao Princípio do Mundo" reúne várias cerimônias de adeus. E não só para Marcello Mastroianni, em seu último papel, ironicamente interpretando o próprio Manoel de Oliveira.
O filme divide-se em duas partes, aparentemente distintas. Na primeira, o cineasta Manoel percorre antigos caminhos, sondando lugares marcantes de sua vida -o colégio onde estudou quando criança, um velho hotel abandonado, palco dos primeiros amores.
Trata-se de um movimento, digamos, proustiano, tentativa de compreender a vida com a ajuda da memória. Nesse caminho, o espectador tropeça na beleza, intensificada pela melancolia da saudade. Afinal, tudo ainda está lá, mas em estado de ruína. À memória, resta o trabalho de preencher os vazios impostos pelo tempo. Até esse ponto, a "Viagem ao Princípio do Mundo" realiza-se em sentido literal.
O cineasta Manoel, contudo, insiste que falta algo a encontrar. Uma imagem perdida. A estátua de Pedro Macau, que funciona como símbolo da condição humana, em geral, e portuguesa, em particular, com um eterno fardo a carregar e sem poder se livrar dele, sob o risco de se aniquilar. Esse ponto alto do filme serve também de passagem para o segundo ato.
A partir daí, o "princípio do mundo" amplia seu significado. Na companhia de Manoel, e até então quase em silêncio, viaja Afonso, um ator francês que também busca suas origens portuguesas. Filho de um imigrante, Afonso participa da viagem para reencontrar a família de seu pai.
Num "fim do mundo", em meio a cabras, onde sobrevive uma aldeia, habitada só por velhos, é a vez de Afonso reencontrar sua origem. Uma força cômica nasce da incapacidade de a velha tia de Afonso compreender "por que ele não fala a nossa língua".
Por trás dela, Oliveira constrói com ironia sua visão da União Européia e do lugar subordinado que Portugal ocupa nela. Ela é, sobretudo, um desdobramento político da outra viagem, a existencial, ambas em luta contra o esquecimento, um último adeus à identidade condenada, a Portugal, em suma.
Nesse momento de síntese entre o passado e o presente, Oliveira reitera, para os ainda reticentes, porque ele é o maior cineasta vivo.

Filme: Viagem ao Princípio do Mundo Produção: Portugal, 1997 Direção: Manoel de Oliveira Com: Marcello Mastroianni, Jean-Yves Gautier, Leonor Silveira Quando: a partir de hoje, no Cinesesc


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