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"O CENTAURO NO JARDIM"
Scliar concebe uma alegoria judaica
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Os Tratskovsky poderiam ser
uma típica família de colonos judeus russos emigrados para
o Rio Grande do Sul. Comemoram a Páscoa e o Ano Novo judaico. Jejuam no Iom Kippur, o Dia
do Perdão. Tudo correria naturalmente, não fosse o infortúnio de o
filho mais novo, Guedali, ter nascido centauro -o monstro mitológico metade homem metade cavalo.
Essa é a idéia de "O Centauro no
Jardim", de Moacyr Scliar, escritor eleito para a Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha. O romance foi publicado pela
primeira vez em 1980 e escolhido
pelo National Yiddish Book Center, dos Estados Unidos, um dos
cem melhores livros de temática
judaica dos últimos 200 anos.
Pode lembrar as narrativas do
realismo fantástico da literatura
latino-americana, mas apresenta
tônica bastante diferenciada. Afinal, as circunstâncias relativas à
existência do centauro (ou centauros, pois há outros) não se engendram com a naturalidade do
fato consumado, mas são continuamente problematizadas à medida que a história progride.
A princípio, os pais ficam horrorizados, sendo em seguida obrigados a esconder o filho. Decisões
como o do empreendimento da
circuncisão e do bar mitzvah (cerimônia que marca a emancipação do menino judeu) envolvem
óbvias dificuldades. Mais tarde,
após o personagem passar por
uma cirurgia corretiva no Marrocos, sobram-lhe os cascos, e ele é
obrigado a usar botas especiais.
Talvez o parentesco mais próximo (embora distante) se dê com
as fábulas do folclore iídiche e as
histórias de autores como Scholem Aleichem, cujas ficções inspiraram "Um Violonista no Telhado". O romance de Scliar não deixa de ser uma alegoria judaica.
Uma alegoria complicada, pois,
como sabemos, o centauro é uma
figura da tradição grega. Essa peculiaridade, de pronto, indica
uma cisão na personagem, entre
suas raízes israelitas e o mundo
ocidental em que se insere. Um
mundo visto com a "ancestral
desconfiança judaica em relação
ao gentio".
Instável
A desconfiança tem sua razão
de ser. A primeira referência a cavalos na história da família Tratskovsky está ligada aos "pogroms", os ataques russos contra
as aldeias judaicas, durante os
quais "cossacos bêbados invadiam a aldeias, lançavam os cavalos enlouquecidos contra velhos e
crianças".
O cavalo é a porção instável e
violenta que Guedali precisa lidar
e, se possível, converter à luz mosaica. Não é mera coincidência o
fato de que, logo depois de os cascos do herói, como que por milagre, desfazerem-se revelando "pés
pequenos e delicados como os de
um bebê", Guedali faça sua primeira viagem a Israel.
Que essa cisão é interna, ou seja,
está entranhada mais no psiquismo do personagem do que numa
metamorfose exterior, é algo não
apenas pontuado no decorrer do
romance, mas também explicitado em seu desenlace, o qual, para
não roubar a surpresa ao leitor,
nos abstemos de analisar.
O Centauro no Jardim
Autor: Moacyr Scliar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33,50 (240 págs.)
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