São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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"O CENTAURO NO JARDIM"

Scliar concebe uma alegoria judaica

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Os Tratskovsky poderiam ser uma típica família de colonos judeus russos emigrados para o Rio Grande do Sul. Comemoram a Páscoa e o Ano Novo judaico. Jejuam no Iom Kippur, o Dia do Perdão. Tudo correria naturalmente, não fosse o infortúnio de o filho mais novo, Guedali, ter nascido centauro -o monstro mitológico metade homem metade cavalo.
Essa é a idéia de "O Centauro no Jardim", de Moacyr Scliar, escritor eleito para a Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha. O romance foi publicado pela primeira vez em 1980 e escolhido pelo National Yiddish Book Center, dos Estados Unidos, um dos cem melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos.
Pode lembrar as narrativas do realismo fantástico da literatura latino-americana, mas apresenta tônica bastante diferenciada. Afinal, as circunstâncias relativas à existência do centauro (ou centauros, pois há outros) não se engendram com a naturalidade do fato consumado, mas são continuamente problematizadas à medida que a história progride.
A princípio, os pais ficam horrorizados, sendo em seguida obrigados a esconder o filho. Decisões como o do empreendimento da circuncisão e do bar mitzvah (cerimônia que marca a emancipação do menino judeu) envolvem óbvias dificuldades. Mais tarde, após o personagem passar por uma cirurgia corretiva no Marrocos, sobram-lhe os cascos, e ele é obrigado a usar botas especiais.
Talvez o parentesco mais próximo (embora distante) se dê com as fábulas do folclore iídiche e as histórias de autores como Scholem Aleichem, cujas ficções inspiraram "Um Violonista no Telhado". O romance de Scliar não deixa de ser uma alegoria judaica.
Uma alegoria complicada, pois, como sabemos, o centauro é uma figura da tradição grega. Essa peculiaridade, de pronto, indica uma cisão na personagem, entre suas raízes israelitas e o mundo ocidental em que se insere. Um mundo visto com a "ancestral desconfiança judaica em relação ao gentio".

Instável
A desconfiança tem sua razão de ser. A primeira referência a cavalos na história da família Tratskovsky está ligada aos "pogroms", os ataques russos contra as aldeias judaicas, durante os quais "cossacos bêbados invadiam a aldeias, lançavam os cavalos enlouquecidos contra velhos e crianças".
O cavalo é a porção instável e violenta que Guedali precisa lidar e, se possível, converter à luz mosaica. Não é mera coincidência o fato de que, logo depois de os cascos do herói, como que por milagre, desfazerem-se revelando "pés pequenos e delicados como os de um bebê", Guedali faça sua primeira viagem a Israel.
Que essa cisão é interna, ou seja, está entranhada mais no psiquismo do personagem do que numa metamorfose exterior, é algo não apenas pontuado no decorrer do romance, mas também explicitado em seu desenlace, o qual, para não roubar a surpresa ao leitor, nos abstemos de analisar.


O Centauro no Jardim
   
Autor: Moacyr Scliar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33,50 (240 págs.)



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