|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"DAQUELA ESTRELA À OUTRA"
Novas traduções de Haroldo de Campos e Aurora Bernardini recuperam o poeta italiano
Ungaretti retorna a seu "nada inexprimível"
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Entre a flor que se colheu e a
flor que nos foi dada, disse o
poeta Giuseppe Ungaretti (1888-1970), está "o inexprimível nada".
Os versos desse poema curtíssimo, que está em seu livro "A Alegria", poderiam simbolizar as dificuldades de toda tradução poética. Por mais exata que seja a semelhança entre o poema original
e a tradução, entre a flor colhida e
a flor ofertada, há sempre um
"nada inexprimível", intervalo de
tempo e espaço, a separá-las.
Em italiano, o poema de Ungaretti é assim: "Tra un fiore colto e
l'altro donato/ l'inesprimibile nulla". Na tradução integral de "A
Alegria", feita por Geraldo de Holanda Cavalcanti (Record, 2003),
lemos: "Entre uma flor colhida e
outra ofertada/ o inexprimível nada". A rima, que não existia no
original, talvez soe um tanto fácil;
mas o efeito dos versos sobre o leitor resulta imediato.
Já o poeta Haroldo de Campos
(1929-2003), em sua tradução,
preferiu evitar a rima: "Entre uma
flor colhida e o dom de outra/ o
nada inexprimível". O poema se
torna mais complexo, talvez, já
que "o dom de outra" sugere uma
flor ainda futura; pensamos na
possibilidade de que uma flor venha a ser dada mais tarde, e não
numa já recebida.
Seja como for, a poesia de Ungaretti sempre dá a impressão de
que, quanto mais curta e sintética,
maior a sua força sugestiva, e
maior o abismo que abre para o
leitor. Ainda em tradução de Haroldo de Campos, eis outro poema, agora da década de 50, que
parece duplicar o anterior: "Daquela estrela à outra/ a noite se encarcera/ em turbinosa vazia desmesura. // Daquela solidão de estrela/ Àquela solidão de estrela".
"Daquela Estrela à Outra" é
também o título do belo livro organizado por Lúcia Wataghin para a Ateliê Editorial, que reúne
traduções de Ungaretti feitas por
Haroldo de Campos e Aurora F.
Bernardini, além de ensaios curtos sobre a obra do poeta italiano.
Um deles, escrito pelo próprio
Campos em 1984, comenta admiravelmente o poema das estrelas,
aproximando-o dos versos do romântico Giacomo Leopardi
(1798-1837) e do simbolista Stéphane Mallarmé (1842-1898).
Se os poemas de "A Alegria" já
são conhecidos do leitor brasileiro, merece especial destaque o fato de que a coletânea bilíngue inclui, na íntegra, um outro livro de
Ungaretti -"A Dor", com poemas escritos entre 1937 e 1946.
Traduzidos por Aurora F. Bernardini, correspondem a um período terrível na vida do poeta:
não só a guerra, mas a morte do
seu irmão e do seu filho conferem
aos versos um peso quase insuportável. Sonoridades litúrgicas,
exclamações patéticas, referências ao imaginário cristão e à paisagem brasileira (o poeta morou
no Brasil de 1936 a 1942) se alternam com o conhecido poder de
Ungaretti para a extrema síntese.
A essa concisão, e a essa enorme
dor, parecem referir-se os seguintes versos de "Tudo Perdi": "A vida mais não é,/ Detida no fundo
da garganta,/ Que uma rocha de
gritos".
Não é preciso dizer mais.
Daquela Estrela à Outra
Autor: Giuseppe Ungaretti
Tradução: Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: R$ 54 (230 págs.)
Texto Anterior: Música: Kurt Cobain cogitou deixar Nirvana antes de morrer Próximo Texto: Teatro: "Aldeotas" apreende retalhos da memória Índice
|