São Paulo, sábado, 13 de março de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Polêmica literária sobrevive anêmica

ALEXEI BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para nós, contemporâneos desta coisa insólita que responde pelo nome de politicamente correto, chega a ser difícil imaginar a força, a virulência e até a popularidade que tiveram as polêmicas literárias no Brasil.
Com ancestral tradição portuguesa, o gênero se inaugura mais visivelmente entre nós em 1856, após a publicação do poema épico "A Confederação dos Tamoios", por Gonçalves de Magalhães. José de Alencar, então com 27 anos e já com o espírito combativo -para não dizer birrento- que sempre o caracterizou, leu o poema, não gostou do que leu, irritou-se com o favor, para ele injusto, que d. Pedro 2º outorgara ao poeta e começou a publicar no "Diário do Rio de Janeiro" as suas "Cartas sobre a Confederação", dando origem à polêmica célebre. Magoado, o imperador saiu em busca de apoio, indo atrás dos respeitabilíssimos nomes de Monte Alverne, Varnhagen e até de Gonçalves Dias, que em nada correspondeu à sua expectativa.
Da década seguinte é a memorável polêmica sobre as Bíblias falsificadas, antepondo, no Recife, o bravo general Abreu e Lima, um dos maiores espíritos libertários do nosso século 19, ao monsenhor Pinto de Campos, natural do Pajeú das Flores, berço maior de cangaceiros e valentes no Brasil, o que explica de certa forma o nível a que desceu o embate.
Na década de 1870, o Brasil é sacudido pela polêmica entre José de Alencar, novamente ele, e Joaquim Nabuco. Ao cearense, que era escravista e odiava o imperador desde que este não o escolhera para senador do império, se opunha o jovem abolicionista pernambucano.
Em 1879, Camilo Castelo Branco publica em Portugal o "Cancioneiro Alegre", no qual escarnece de vários dos nossos românticos por seus solecismos e deslizes gramaticais. Em resposta, dando origem a um combate memorável, Carlos de Laet descobre os mesmíssimos deslizes e solecismos na obra gigantesca de Camilo, cuja força para a polêmica apavorava até os mais corajosos.
Em 1888, momento marcante do naturalismo no Brasil, Júlio Ribeiro publica "A Carne". O padre português Sena Freitas, discípulo aliás de Camilo Castelo Branco, então residente em São Paulo, reagiu virulentamente à obra com artigo intitulado "Carniça", dando margem à terrível resposta de Júlio Ribeiro, "O Urubu Sena Freitas".
No mesmo ano, têm início os terríveis ataques de Sílvio Romero a Machado de Assis, que redundarão, 11 anos depois, na resposta de Lafayette Rodrigues Pereira em Vindicae. Após esse episódio, Sílvio Romero assestaria suas baterias sobre Teófilo Braga, José Veríssimo e Laudelino Freire.
De 1902 data a mais célebre polêmica gramatical -gênero infindável e quase sempre ilegível- havida entre nós, a que se travou entre Rui Barbosa e o professor Carneiro Ribeiro sobre a redação do Código Civil brasileiro, originando a celebérrima "Réplica". Tais polêmicas gramaticais, satirizadas por Monteiro Lobato em "O Colocador de Pronomes", dominaram o Brasil do início do século 20. Relacionadas com a eclosão do modernismo, temos aquela que antepôs o recém-lembrado autor de "Urupês" aos próceres do movimento, quando da exposição de Anita Malfatti, em 1917, o embate entre Graça Aranha e a Academia Brasileira de Letras, ou a carta aberta de Mário de Andrade a Alberto de Oliveira. Quase do mesmo período é o choque mais do que truculento entre o genial polemista Antônio Torres e seu arqui-inimigo João do Rio; o primeiro, um lusófobo fanático, o segundo, o maior propagandista da colônia portuguesa na capital federal.
Na década de 1930, acontece a polêmica conhecida como escândalo da Academia Brasileira de Letras, envolvendo Cassiano Ricardo, Fernando Magalhães, Olegário Mariano, Edmundo Muniz e, indiretamente, a vencedora do concurso da casa, Cecília Meireles. Duas décadas mais tarde, será a vez da carta aberta de Augusto Meyer a Agripino Grieco, ainda em defesa de Machado de Assis, como já acontecera com os ataques de Sílvio Romero.
As vanguardas surgidas na década de 1950 proporcionaram, até por posição programática, uma verdadeira enxurrada de polêmicas que, de certo modo, continuam até hoje. Na década de 1970, finalmente, explode a infindável polêmica entre Joaquim Inojosa e Gilberto Freire, a respeito do, ao que tudo indica, apócrifo "Manifesto Regionalista". Dessa época até hoje, a polêmica literária sobrevive, ainda que cada vez mais anêmica em meio da nossa civilização de massa.


ALEXEI BUENO é poeta e um dos autores de "Duelos no Serpentário - Uma Antologia da Polêmica Intelectual no Brasil 1850-1950"


Texto Anterior: Pupilo diz que decidiu sair da defensiva
Próximo Texto: Sem Guns, clube tem noite de pancadaria
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.