São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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"O HOMEM INVISÍVEL"

Respeitado em todo o mundo, autor britânico de ficção científica continua subestimado no Brasil

Tradução empobrece clássico de H.G. Wells

JESUS DE PAULA ASSIS
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Quando se pensa em ficção científica, dois nomes vêm à mente: Júlio Verne e Herbert George Wells. A diferença entre ambos é imensa. Enquanto Verne examina a tecnologia disponível em sua época e a transpõe para situações em que ela se torna popular (imaginando, por exemplo, um mundo em que viagens de balão fossem simples), Wells toma da ciência apenas a retórica e propõe situações fantásticas.
Quem gosta de procurar por antecessores certamente se decepcionará com Wells. Ele não criou a viagem no tempo, ou a vivissecção que transforma bestas em homens (em "A Ilha do Dr. Moreau", de 1898), nem o Homem Invisível. Mas criou os ícones, da mesma forma que Mary Shelley criou o barão Frankenstein (e a criatura) e Stevenson expôs os dois lados da psique no doutor Jekyll (e Mr. Hyde). Em todos os casos, existem antecessores e, em todos eles, estão esquecidos.
O que seria possível fazer com a invisibilidade? Tudo, à primeira vista. É um emblema da liberdade de observar sem ser observado. É isso o que leva Griffin, o personagem de Wells, a desenvolver uma fórmula e apressadamente testá-la no próprio corpo. Sucesso! Mas ao preço de só poder andar nu em uma Londres de inverno, de não poder carregar nada consigo e até de não poder comer livremente.
Fugindo de Londres para o campo, para os pequenos vilarejos (que para Wells resumem a própria essência da estupidez), Griffin vai tomando reféns, apavorando as pessoas, esgueirando-se, ora fugindo aterrorizado da multidão, ora voltando-se contra ela. Seu fim é óbvio: a morte. A mesma que alcançou o Dr. Moreau, Jekyll, Victor Frankenstein e tantos outros que desafiaram o desconhecido.
A questão de o que é esse "desconhecido" para Wells é o que dá unidade a essa primeira fase de sua carreira literária, que vai de 1895 a 1904. A invisibilidade é desconhecida. Mas mais surpreendente do que ela é o que esse dom expõe sobre os homens.
A vida cotidiana, cheia de regras e limitações, esconde homens fundamentalmente brutais e os novos poderes expõem essa brutalidade. Griffin é apresentado desde o início como um sujeito medianamente ruim. (Por exemplo, quando precisa de dinheiro para concluir suas pesquisas, não hesita em roubar o pai, o que levaria ao suicídio deste.) Mas Wells consegue fazer com que, em um ou outro momento, o leitor simpatize com esse homem comum a quem foi dada a incerta dádiva de se tornar invisível. Especialmente no momento de sua morte, fica evidente que seus captores não são nada melhores que ele. São apenas mais modestos em seus dons.
Uma só idéia permeia toda essa primeira ficção wellsiana: o homem é moralmente inferior às suas capacidades intelectuais, os cientistas são pouco melhores, mas ainda perigosos e, quanto ao povo, nem pensar. Não é de estranhar que, quando o autor de "A Máquina do Tempo" deixa de lado essa ficção exploratória, parta para a produção de obras utópicas marcadamente paternalistas, em que essa humanidade inculta e perigosa ("sofrivelmente humana") deve ser conduzida por meia dúzia de eleitos (que em seu "Uma Utopia Moderna" chamará de samurais).
Dada a importância do autor e do ícone do Homem Invisível, seria de exigir uma tradução à altura. Infelizmente, a atual representa um retrocesso em relação à publicada em 1985 pela editora Francisco Alves. Quanto à apresentação e às notas, que denotam uma certa pretensão erudita, pouco há o que dizer além de que quase nada acrescentam. Já o caso da tradução é mais grave. A frase de inspiração bíblica (1 Reis 2:32) "His blood be upon his own head", que, livremente, poderia ser traduzida por um "que aguente as consequências", ou, à risca, com um "que seu sangue recaia sobre sua cabeça", torna-se "o sangue jorrará sobre sua cabeça". Sangue de quem, pergunta o leitor?
No último parágrafo do livro, o involuntário herdeiro dos escritos do Homem Invisível (que Wells apresenta só para mostrar ao leitor que o vulgo só não é mais mau por falta de inteligência) sonha "the undying wonderful dream of his life". Trata-se do imortal sonho de poder, que passa agora pela cabeça desse homem inculto. Certamente não "sonha que é imortal", como está na tradução.
Esses e outros deslizes não chegam a fazer do texto uma massa irreconhecível, como às vezes acontece por aí. Mas, em todo caso, é uma pena, pois perde-se a oportunidade de fazer justiça a um clássico. Em todo o mundo, Wells é visto como autor de primeira linha (especialmente as obras de seus primeiros dez anos de carreira). No Brasil, salvo por uma ou outra iniciativa, permanece sendo tratado como entretenimento juvenil. E essa edição é apenas mais um caso desses.


O Homem Invisível   
Autor: H.G. Wells
Tradução: Vera Caputo
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 19,50 (168 págs.)




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