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LIVROS/LANÇAMENTOS
"O HOMEM INVISÍVEL"
Respeitado em todo o mundo, autor britânico de ficção científica continua subestimado no Brasil
Tradução empobrece clássico de H.G. Wells
JESUS DE PAULA ASSIS
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Quando se pensa em ficção
científica, dois nomes vêm à
mente: Júlio Verne e Herbert
George Wells. A diferença entre
ambos é imensa. Enquanto Verne
examina a tecnologia disponível
em sua época e a transpõe para situações em que ela se torna popular (imaginando, por exemplo,
um mundo em que viagens de balão fossem simples), Wells toma
da ciência apenas a retórica e propõe situações fantásticas.
Quem gosta de procurar por antecessores certamente se decepcionará com Wells. Ele não criou
a viagem no tempo, ou a vivissecção que transforma bestas em homens (em "A Ilha do Dr. Moreau", de 1898), nem o Homem
Invisível. Mas criou os ícones, da
mesma forma que Mary Shelley
criou o barão Frankenstein (e a
criatura) e Stevenson expôs os
dois lados da psique no doutor
Jekyll (e Mr. Hyde). Em todos os
casos, existem antecessores e, em
todos eles, estão esquecidos.
O que seria possível fazer com a
invisibilidade? Tudo, à primeira
vista. É um emblema da liberdade
de observar sem ser observado. É
isso o que leva Griffin, o personagem de Wells, a desenvolver uma
fórmula e apressadamente testá-la no próprio corpo. Sucesso! Mas
ao preço de só poder andar nu em
uma Londres de inverno, de não
poder carregar nada consigo e até
de não poder comer livremente.
Fugindo de Londres para o
campo, para os pequenos vilarejos (que para Wells resumem a
própria essência da estupidez),
Griffin vai tomando reféns, apavorando as pessoas, esgueirando-se, ora fugindo aterrorizado da
multidão, ora voltando-se contra
ela. Seu fim é óbvio: a morte. A
mesma que alcançou o Dr. Moreau, Jekyll, Victor Frankenstein e
tantos outros que desafiaram o
desconhecido.
A questão de o que é esse "desconhecido" para Wells é o que dá
unidade a essa primeira fase de
sua carreira literária, que vai de
1895 a 1904. A invisibilidade é desconhecida. Mas mais surpreendente do que ela é o que esse dom
expõe sobre os homens.
A vida cotidiana, cheia de regras
e limitações, esconde homens
fundamentalmente brutais e os
novos poderes expõem essa brutalidade. Griffin é apresentado
desde o início como um sujeito
medianamente ruim. (Por exemplo, quando precisa de dinheiro
para concluir suas pesquisas, não
hesita em roubar o pai, o que levaria ao suicídio deste.) Mas Wells
consegue fazer com que, em um
ou outro momento, o leitor simpatize com esse homem comum a
quem foi dada a incerta dádiva de
se tornar invisível. Especialmente
no momento de sua morte, fica
evidente que seus captores não
são nada melhores que ele. São
apenas mais modestos em seus
dons.
Uma só idéia permeia toda essa
primeira ficção wellsiana: o homem é moralmente inferior às
suas capacidades intelectuais, os
cientistas são pouco melhores,
mas ainda perigosos e, quanto ao
povo, nem pensar. Não é de estranhar que, quando o autor de "A
Máquina do Tempo" deixa de lado essa ficção exploratória, parta
para a produção de obras utópicas marcadamente paternalistas,
em que essa humanidade inculta
e perigosa ("sofrivelmente humana") deve ser conduzida por meia
dúzia de eleitos (que em seu
"Uma Utopia Moderna" chamará
de samurais).
Dada a importância do autor e
do ícone do Homem Invisível, seria de exigir uma tradução à altura. Infelizmente, a atual representa um retrocesso em relação à publicada em 1985 pela editora
Francisco Alves. Quanto à apresentação e às notas, que denotam
uma certa pretensão erudita, pouco há o que dizer além de que quase nada acrescentam. Já o caso da
tradução é mais grave. A frase de
inspiração bíblica (1 Reis 2:32)
"His blood be upon his own
head", que, livremente, poderia
ser traduzida por um "que aguente as consequências", ou, à risca,
com um "que seu sangue recaia
sobre sua cabeça", torna-se "o
sangue jorrará sobre sua cabeça".
Sangue de quem, pergunta o leitor?
No último parágrafo do livro, o
involuntário herdeiro dos escritos
do Homem Invisível (que Wells
apresenta só para mostrar ao leitor que o vulgo só não é mais mau
por falta de inteligência) sonha
"the undying wonderful dream of
his life". Trata-se do imortal sonho de poder, que passa agora pela cabeça desse homem inculto.
Certamente não "sonha que é
imortal", como está na tradução.
Esses e outros deslizes não chegam a fazer do texto uma massa
irreconhecível, como às vezes
acontece por aí. Mas, em todo caso, é uma pena, pois perde-se a
oportunidade de fazer justiça a
um clássico. Em todo o mundo,
Wells é visto como autor de primeira linha (especialmente as
obras de seus primeiros dez anos
de carreira). No Brasil, salvo por
uma ou outra iniciativa, permanece sendo tratado como entretenimento juvenil. E essa edição é
apenas mais um caso desses.
O Homem Invisível
Autor: H.G. Wells
Tradução: Vera Caputo
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 19,50 (168 págs.)
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