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BERNARDO CARVALHO
A dança dos fantasmas
Na Bienal do Whitney
Museum do ano passado,
em Nova York, havia um vídeo de
um jovem artista americano chamado Jeremy Blake. O vídeo mostrava uma casa enorme no estilo
vitoriano tão apreciado por expatriados e novos ricos do final do
século 19, de Xangai às Américas,
como uma forma de transpor o
mundo das suas fantasias para a
realidade dos seus lucros.
Em grande parte, a câmera de
Blake não se mexia; o que mudava na imagem era a textura e as
cores. Pela lenta decomposição
fantasmagórica e pela transformação psicodélica da imagem
imóvel da casa, o efeito podia ser
tanto hipnótico como narcoléptico. E, se não fosse pela explicação
logo abaixo do título do vídeo
("Winchester") na etiqueta pregada na parede, o espectador não
entendia o que estava vendo.
"Winchester" é desses trabalhos
cada vez mais frequentes em museus e galerias de arte em que a
etiqueta informativa tem mais
importância e autonomia do que
a obra. O trabalho não seria nada
sem as informações -e até poderia ser substituído por elas. No caso do vídeo de Jeremy Blake, as
informações eram, além do mais,
extraordinárias.
A casa em questão é a que Sarah Winchester, viúva do herdeiro do criador da carabina homônima, "a arma que conquistou o
oeste", mandou construir em San
José, na Califórnia, ao longo das
últimas décadas de sua vida, entre 1884 e 1922. O rifle de repetição
Winchester teve um papel central
na Guerra de Secessão e foi decisivo na vitória sobre os índios modocs, da Califórnia, encurralados
e derrotados num confronto que
se estendeu por anos, até 1873.
Depois da morte do marido, em
1881, a viúva Winchester passou a
crer que era perseguida pelas almas penadas dos que tinham
morrido sob o fogo dos rifles que a
deixaram rica. Espírita contumaz
(milhões de americanos praticavam o espiritismo na época), começou a construir uma casa para
acomodar os fantasmas que a
atormentavam. A casa terminou
com 2.000 portas, 10 mil janelas,
47 lareiras e 160 quartos, no meio
dos quais ela morava e recebia -
sobretudo em sessões espíritas.
Sob orientação de um médium,
Sarah Winchester foi acrescentando salas, quartos, escadas, andares e sótãos, ininterruptamente
e sem nenhum projeto prévio, por
quase 40 anos, com o intuito não
só de criar aposentos para as boas
almas, mas de despistar os maus
espíritos com labirintos, janelas
que davam para dentro de outros
quartos, corredores, portas e escadas que não iam dar em lugar nenhum e mantê-los afastados graças ao barulho da obra interminável.
A casa monstruosa da viúva
Winchester se tornou fonte inesgotável de inspiração e metáforas
para artistas e escritores interessados nos mitos americanos.
Num típico esforço retórico de
atribuir um sentido a uma obra
que por si só não o comportaria,
Jeremy Blake define seu vídeo como uma forma de confrontar "a
maneira como a cultura americana sofre e mitologiza a violência".
E assim, a exemplo de Sarah Winchester, acaba, involuntariamente, vendo coisas que não existem.
Para Rebecca Solnit, num livro
recém-publicado ("River of Shadows Eadweard Muybridge and
the Technological Wild West", ed.
Viking), a mansão da viúva Winchester prefigura o labirinto tecnológico do Vale do Silício, no
centro do qual ela foi erguida. A
autora faz outras associações engenhosas entre tecnologia e fantasmagoria. O título "Rio de Sombras" é uma metáfora das imagens em movimento.
À época do advento do cinema,
Thomas Edison dizia que em breve a ópera seria apresentada por
"artistas e músicos há muito tempo mortos". Na origem, a fotografia estava ligada ao sobrenatural,
nem que fosse apenas por guardar para sempre a imagem dos
que já morreram.
Solnit associa esse aspecto ontológico da fotografia à conquista
do Oeste americano e à configuração das condições de possibilidade do capitalismo moderno, na
Califórnia, antevendo Hollywood
e o Vale do Silício. O curioso é que
as mesmas tecnologias que anunciavam uma nova fase (permitindo ao capitalismo reduzir o espaço e acelerar o tempo, como um
"brinquedo nas mãos dos homens", para aumentar os lucros)
também tentavam congelar e reproduzir o tempo, resistindo, talvez inconscientemente, aos desígnios da nova era.
O fotógrafo Eadweard Muybridge entrou para a história como precursor do cinema ao decompor o movimento (para depois reproduzi-lo) em suas famosas sequências de imagens de cavalos a galope e de homens nus
correndo ou lutando. Antes, tinha
sido o fotógrafo oficial da guerra
contra os modocs, contratado pelo Exército americano. E, de alguma forma, a resistência ao avanço inexorável do tempo que se
manifestaria nas suas experiências fotográficas estava em sintonia com as práticas xamanísticas
dos índios.
Encurralados pelos brancos armados de rifles winchester, aos
modocs só restava a mágica. A
dança dos fantasmas ("ghost
dance") foi uma cerimônia incorporada durante a guerra para
dar vida aos mortos, trazê-los de
volta para lutar nas fileiras contra o inimigo. Uma resistência ao
novo tempo imposto pelos brancos, uma forma de congelar o
tempo, de fazê-lo voltar atrás.
Uma forma indígena de cinema.
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