São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 2005

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ANÁLISE

Competição toca em ferida do Iraque com recortes diferentes

PEDRO BUTCHER
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

Os dois filmes exibidos ontem na competição apresentaram uma rima curiosa. Com abordagens radicalmente diferentes, ambos tocaram em uma das maiores feridas contemporâneas: a situação do Iraque.
"Kilomètre Zéro", de Hiner Saleem, é tecnicamente o primeiro filme iraquiano a concorrer em Cannes, apesar de o diretor viver na França há anos e de sua abordagem voltar-se, especificamente, para a situação dos curdos -povo violentamente oprimido pela ditadura de Saddam Hussein.
Já em "Bashing", de Masahiro Kobayashi, representante do Japão, o Iraque surge de maneira indireta, mas interessantíssima. O diretor inspirou-se em fatos reais para falar da rejeição sofrida pelos japoneses que serviram como voluntários na Guerra do Iraque, depois que eles voltaram ao Japão.
É difícil para nós, ocidentais, compreender o que se passa com a jovem Yuko (Fusako Urabe), personagem central do filme. Quando "Bashing" começa, já faz seis meses que ela tenta retomar a vida em seu próprio país, depois de um período traumático sob a custódia de seqüestradores no Iraque. Mas essa readaptação revela-se ainda mais traumática. Yuko recebe telefonemas anônimos agressivos, é tema de uma campanha difamatória na internet e chega a sofrer ataques físicos na rua. Depois de perder o emprego como arrumadeira em um hotel, seu pai é "convidado" a se demitir de seu emprego, o que é motivo de profunda humilhação.
Tudo isso porque, para os japoneses, o trabalho voluntário não é sinônimo de bondade, mas de fracasso. Um voluntário que ainda por cima é seqüestrado, forçando o país a tomar medidas complexas e caras, é visto como um estorvo incalculável, motivo de desprezo e de vergonha.
Triste a perder de vista, o longa é duro sem perder a ternura. Kobayashi -que tem 50 anos e foi assistente de François Truffaut- apresenta o problema de ser diferente em uma sociedade provinciana e rígida como a japonesa sem desfilar veredictos morais.
Em certo sentido, seu filme é muito parecido com "Ninguém Pode Saber", de Hirokazu Kore-eda, que representou o Japão na competição do ano passado.
Ao lado da surpresa e da complexidade de "Bashing", "Kilomètre Zéro" é apenas um filme digno e politicamente correto. A maior parte da ação se passa em 1988, durante a guerra Irã-Iraque.
Acompanhamos a saga de Ako (Nazmi Kirik), que precisa levar o corpo de um soldado morto em combate de volta à casa de sua família. Mas o carro, que carrega um caixão no topo, é proibido de circular durante o dia para não "desanimar" a população. O culto à personalidade de Saddam Hussein e a perseguição aos curdos são expostos a todo o momento.
Mas todas as escolhas e recortes temporais feitos por Hiner Saleem ("Vodka Lemon") parecem um tanto manipuladores. Tudo se posiciona no sentido de fazer crer que a libertação do regime de Saddam foi uma dádiva dos céus e "apesar do passado trágico, há todo um futuro pela frente", como sugere no diálogo final.


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