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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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O dramaturgo Harold Pinter fala de seu processo de criação e critica Tony Blair e George W. Bush

Teatro no tempo da CÓLERA

SEAN JAMES ROSE
DO "LIBÉRATION"

Harold Pinter tem apenas 72 anos. Apenas 72 anos porque monumentos não têm idade, e é difícil imaginar o que o teatro britânico contemporâneo poderia fazer sem ele. Pinter, como diz seu biógrafo Michael Billington, mereceu do "New Shorter Oxford English Dictionary" uma entrada especial para "pinteresque". Hoje, fala-se de uma pausa pinteresca ou de um estilo pinteresco. Mais que qualquer outro autor de sua geração, do outro lado da Mancha, ele encarna um certo ideal de teatro, e seu nome se destaca de maneira singular do resto da cena teatral britânica do pós-guerra.
O pós-guerra: os "angry young men", os jovens rancorosos, liderados por John Osborne, com "Look Back in Anger" (1956), crítica violenta a uma Inglaterra esclerosada. É a era de Edward Bond, Arnold Wesker, John Arden, Joe Orton, quase todos oriundos das classes operárias e sequiosos por derrubar o teatro pseudo-shakespeariano e lírico e os dramas burgueses da era. Nasceu com eles um novo teatro, e, na efervescência dos anos 50, um ator de comédia nascido no East End londrino, Harold Pinter, começou a assinar peças em que uma linguagem composta de gírias, rupturas e silêncio dominava. "The Room" (O Quarto), encenada pela primeira vez em 1957, "The Birthday Party" (A Festa de Aniversário), "The Caretaker" (O Vigia). A violência se torna uma nova sintaxe. O humor, no entanto, jamais está ausente do trabalho de Pinter, como o prova sua mais recente peça, "Celebration" (Celebração).
Reencontrando o tempo, Pinter se tornou um "angry young man" cuja cólera não se aplaca diante do governo do presidente dos EUA, George W. Bush. A propósito das armas de destruição em massa: "Sei onde estão. Nos Estados Unidos". E sobre o primeiro-ministro britânico, Tony Blair: "Um poodle perigoso".
Mas Pinter é também Pinter o roteirista, colaborador de Joseph Losey: em "O Mensageiro" ("The Go-Between"), adaptação do romance de L.P. Hartley, Palma de Ouro em Cannes em 71, bem como em "O Criado" ("The Servant"), "Estranho Acidente" ("Accident") e outros. É lamentável que "The Proust Screenplay" (O Roteiro de Proust), escrito em colaboração com Losey e Barbara Bray, não tenha se concretizado.
Pinter é também poeta. E político. O engajamento foi sempre parte de sua vida e obra. De passagem por Paris, há alguns meses, não deixou de expressar a sua preocupação com a ocupação anglo-americana do Iraque. Ao receber um doutorado honoris causa da Universidade de Turim, em novembro de 2002, ele evocou sua luta com o câncer e declarou: "Emergi de um pesadelo particular e penetrei em um pesadelo público muito mais tenaz, o pesadelo da histeria, da ignorância, da arrogância, da estupidez e da belicosidade americanas".
Também tratou de literatura, certamente, porque acabam de sair na França novas edições de "The Room" e "Celebration" (2000), "The Proust Screenplay" e uma coletânea, "War" (Guerra), incluindo poesias sobre o conflito e o discurso em Turim.

Pergunta - O sr. jamais dissociou a política de sua obra; essa consciência lhe foi legada por seus pais?
Harold Pinter -
Venho de uma família de alfaiates judeus de Londres. Meu pai trabalhava 12 horas por dia e estava ocupado demais atendendo às necessidades da família para se dedicar à política. Mas nasci em uma época muito política, entre as duas guerras, e tinha 20 anos em plena Guerra Fria. Paradoxalmente, no final dos anos 40, voltaram à liberdade na Inglaterra os fascistas que estiveram aprisionados durante a guerra. O governo, se bem que fosse trabalhista, acreditava em toda espécie de conceitos liberais, como liberdade de expressão e de reunião, e fechava os olhos diante da violência racista desses grupos.

Pergunta - Sua posição de oposição às guerras não é nova; o sr. objetou ao serviço militar por questões de consciência.
Pinter -
Isso aconteceu em 1948, o serviço militar era obrigatório, e recusá-lo era passível de prisão. Decidi que não serviria o Exército, e meus pais ficaram mortificados. Mas me deixaram fazê-lo, e meu pai pagou advogados no processo e na apelação.

Pergunta - O sr. é um escritor engajado, mas nas suas peças nada é enunciado de maneira explícita.
Pinter -
Na arte, não existem distinções claras entre o que é verdade e o que não é. Porque a obra de arte que aspira a retratar a complexidade do real é, em si, muito complexa, não se pode definir nada. As questões propostas no nível estético não equivalem às questões do plano político. E é responsabilidade e dever de cada um, como cidadão, distinguir claramente entre a verdade e a mentira. Nas minhas peças, ocasionalmente introduzo elementos políticos, estendo uma tela política, mas jamais inscreverei ali algo que seja da ordem de uma declaração. A política está lá simplesmente porque faz parte do mosaico da vida, porque, na vida exterior à arte, na vida em sociedade, ela existe para todos.

Pergunta - Alguns dos seus poemas, especialmente em "War", parecem ser verdadeiras diatribes contra a política externa dos EUA.
Pinter -
No pesadelo que foi o conflito no Iraque, minha cólera e indignação se exprimiram em minha poesia. Nos últimos seis meses, redigi seis poemas, o que é muito para mim, que jamais escrevi mais que dois ou três ao ano. Na manifestação contra a guerra em Londres, em fevereiro, da qual participaram 1,5 milhão de pessoas, declamei no Hyde Park meu poema "The Bombs" (As Bombas). Foi impressionante falar diante daquele oceano de rostos concentrados que se estendia até onde a vista alcança. Mas minha poesia não é exclusivamente política. Escrevi os primeiros poemas com 13 anos. Estava apaixonado e infeliz (isso já passou). Dylan Thomas, mas também o movimento dadaísta e os surrealistas, foram fonte de inspiração.

Pergunta - O sr. foi comediante, e é bem sabido que o seu teatro não se deixa afetar demais pela teoria.
Pinter -
Continuo a sê-lo; subi ao palco em "Two for the Road", em 84, e trabalhei também na adaptação cinematográfica de "Mansfield Park", o romance de Jane Austen. E embora anteveja toda a cena, ao escrever para o teatro, jamais parto de uma idéia abstrata. Uma das minhas alegrias como dramaturgo é não pensar, ou pelo menos não pensar de maneira estruturada como é a tendência de quem escreve um romance. Vejo-me diante da página em branco e não compreendo nada do que se passa; então, surge-me uma situação, um lugar, uma visão.

Pergunta - A utilização de ditos populares, tiques linguísticos, gíria... Seu teatro foi sempre marcado por uma linguagem identificável. E por silêncios reveladores.
Pinter -
O silêncio não é uma ruptura do texto; faz parte integral dele. É contextual. Um texto que se interrompe não revela uma suposta "incomunicabilidade", rótulo usado frequentemente para qualificar meu trabalho, mas sim um momento de comunicação do vazio interior, uma estratégia de aversão para esconder a pobreza do ser. Nos meus textos, reticências indicam pausas ou silêncios, e os atores se sentem obrigados a fazê-lo durar indefinidamente. Tenho vontade de dizer: "Meu Deus, continue!". Quando trabalho como ator em minhas peças, a pausa chega como um estalar de dedos, porque algo de dramático aconteceu. O silêncio deve sempre ser absoluto, mas não é preciso que dure.

Pergunta - Teatro, poesia, roteiro, o sr. se dedicou a muitos gêneros, mas escreveu só um romance.
Pinter -
Quando meu primeiro e único romance, "The Dwarfs" (Os Anões), foi concluído, em 56, não deixei a carreira de ator. Em 1957, escrevi "The Room", "The Birthday Party", "The Dumb Waiter". Para minha grande surpresa, me tornei dramaturgo. Vinte e oito peças, mais ou menos longas, no total. O teatro dominou minha existência e jamais me deixou tempo para um segundo romance. E havia também os roteiros.

Pergunta - Entre os quais o de Proust. O que esse trabalho representa para o sr.?
Pinter -
O período em que escrevi o roteiro de Proust foi um dos melhores de minha vida. Passei três meses lendo "Em Busca do Tempo Perdido", acompanhando a velha tradução inglesa de Scott-Moncrief, mas sempre me referindo ao original, com a ajuda de uma mulher formidável e tradutora de talento, Barbara Bray. Barbara, Joseph Losey e eu colaboramos intensamente.

Pergunta - Como o sr. condensou todas essas páginas?
Pinter -
Não foi um processo simples. Porque, ao contrário de [Volker] Schlöndorff em "Um Amor de Swann" e [Luchino] Visconti com "Sodoma e Gomorra", que jamais foi realizado, nós queríamos adaptar o romance na íntegra. Fazer outra coisa seria trair o espírito da obra de Proust. Depois de nosso longo trabalho preparatório, Joe [Losey] me disse que era hora de escrever. Respondi que sim. No dia seguinte me levantei, me instalei à minha mesa, encarei as toneladas de notas e livros. Olhei pela janela, fumei um monte de cigarros. Liguei para Joe. "Não consigo, não me vem nada." Joe respondeu: "Vá dar uma volta no parque". Fui passear no Regent's Park. Voltei, liguei de novo. "Nada feito. Hoje não me vem nada." "Você precisa dormir", disse. Fui me deitar.
No dia seguinte, a mesma história. Peguei o telefone. "Impossível, Joe." Ele me disse: "Sei o que você tem de fazer". Perguntei o quê. "Começar!" Comecei, e tudo surgiu de um golpe, imagens, sons, cores, odores se justapunham. Trabalhei sem parar até concluir o roteiro. O filme não foi feito, mas o roteiro foi adaptado para teatro na Inglaterra.


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