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No lombo do sertão a "Bíblia" está pelo avesso
TOM ZÉ
especial para a Folha
Um CD como este não deve ser
lançado. Já que não há censura, a
própria sociedade industrial deve
proteger-se: o exagero, o excesso,
mesmo em se tratando de beleza, é
perversão.
E pra que envergonhar os programadores de rádio? Eles não podem mesmo tocar um disco assim.
Ainda mais esta produção pobre,
sem multinacional que lhe endosse o lançamento.
Comecei a ouvir com algum receio: 50 anos de baião, release falando em celo, orquestra de câmara. Valha-me Deus!
Muitas vezes se pensa que o que
já é divino precisa dessa roupa
"culta" para infundir respeito.
Lembro-me do chapéu de couro
branco e lustroso que a Globo colocou na cabeça de Gonzaga num
daqueles shows hollywoodianos
em que investe uma grana. Era
uma homenagem a Luiz.
No começo eu queria criticar,
inventar que havia muita repetição, antipatizar com um coral do
tipo aula-de-canto-orfeônico.
Mas a voz de Dominguinhos
aparece, me tonteia e a mixagem
me derruba. O produtor Raymundo Campos deixa a voz de Dominguinhos na frente. Ela entesa, viva.
Voz limpa de matuto. Mais do que
voz, é cheiro. Ardido suor de égua.
Obrigado, Raymundo Campos,
por me mostrar de onde eu sou e
qual Cabrobó é minha pátria. No
lombo do sertão a "Bíblia" está
pelo avesso: começa no "Apocalipse" atual de ontem e vive esperando o "Gênesis" para conhecer
a piedade de Deus.
Mesmo apocalíptico, o sertão é
encantado. E quando se alumeia, é
baião. Nele, como perna da fábula,
cada passo passa de ano-luz. Gonzaga foi a espoleta do Big-Bang e o
Pai multiplicou-o em Hermetos,
conjugações e desinências. Assim,
Sivuca chove, Oswaldinho verdeja
e Dominguinhos aflora.
Hermeto
Vem o Albino na olhadura geral
do disco. Hermeto é o desprofessor geral da República, o "mata-doutor-de-susto".
Eu já disse que os três principais
alimentos do Nordeste são desidratados: farinha, charque e ritmo. O ritmo, de tão importante,
pra nós é Deus desidratado.
O repertório é composto por
aqueles hinos do Nordeste, os primeiros baiões compostos por Luiz
Gonzaga em parceria com um deputado ("Você está brincando!"): Humberto Teixeira. Heraldo do Monte fez ótimos arranjos
de base.
Sou apresentado às sanfonas de
Genaro e Camarão e às vozes bem
nordestinas de Flávio, Israel e João
Cláudio.
Quando a gente ouvia Gonzaga
na infância não percebia que sua
divisão, seu timbre e nuances de
voz eram tão refinados.
Quanto ao segundo disco da trilogia, o instrumental "Baião, 50
anos de Identidade Cultural",
ainda não concluído: Renato Borghetti sacode uma milonga adorável. Hermeto, com a sanfona de
oito baixos, faz uma "hipnose do
forró". A mula solta o cabresto e
desce a ribanceira sacolejando a
cangalha.
Se eu pudesse, indicaria "Baião:
50 anos de Poesia, Ritmo e Emoção" para CD do ano.
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