São Paulo, segunda, 13 de julho de 1998

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No lombo do sertão a "Bíblia" está pelo avesso

TOM ZÉ
especial para a Folha

Um CD como este não deve ser lançado. Já que não há censura, a própria sociedade industrial deve proteger-se: o exagero, o excesso, mesmo em se tratando de beleza, é perversão.
E pra que envergonhar os programadores de rádio? Eles não podem mesmo tocar um disco assim. Ainda mais esta produção pobre, sem multinacional que lhe endosse o lançamento.
Comecei a ouvir com algum receio: 50 anos de baião, release falando em celo, orquestra de câmara. Valha-me Deus!
Muitas vezes se pensa que o que já é divino precisa dessa roupa "culta" para infundir respeito. Lembro-me do chapéu de couro branco e lustroso que a Globo colocou na cabeça de Gonzaga num daqueles shows hollywoodianos em que investe uma grana. Era uma homenagem a Luiz.
No começo eu queria criticar, inventar que havia muita repetição, antipatizar com um coral do tipo aula-de-canto-orfeônico.
Mas a voz de Dominguinhos aparece, me tonteia e a mixagem me derruba. O produtor Raymundo Campos deixa a voz de Dominguinhos na frente. Ela entesa, viva. Voz limpa de matuto. Mais do que voz, é cheiro. Ardido suor de égua.
Obrigado, Raymundo Campos, por me mostrar de onde eu sou e qual Cabrobó é minha pátria. No lombo do sertão a "Bíblia" está pelo avesso: começa no "Apocalipse" atual de ontem e vive esperando o "Gênesis" para conhecer a piedade de Deus.
Mesmo apocalíptico, o sertão é encantado. E quando se alumeia, é baião. Nele, como perna da fábula, cada passo passa de ano-luz. Gonzaga foi a espoleta do Big-Bang e o Pai multiplicou-o em Hermetos, conjugações e desinências. Assim, Sivuca chove, Oswaldinho verdeja e Dominguinhos aflora.

Hermeto
Vem o Albino na olhadura geral do disco. Hermeto é o desprofessor geral da República, o "mata-doutor-de-susto".
Eu já disse que os três principais alimentos do Nordeste são desidratados: farinha, charque e ritmo. O ritmo, de tão importante, pra nós é Deus desidratado.
O repertório é composto por aqueles hinos do Nordeste, os primeiros baiões compostos por Luiz Gonzaga em parceria com um deputado ("Você está brincando!"): Humberto Teixeira. Heraldo do Monte fez ótimos arranjos de base.
Sou apresentado às sanfonas de Genaro e Camarão e às vozes bem nordestinas de Flávio, Israel e João Cláudio.
Quando a gente ouvia Gonzaga na infância não percebia que sua divisão, seu timbre e nuances de voz eram tão refinados.
Quanto ao segundo disco da trilogia, o instrumental "Baião, 50 anos de Identidade Cultural", ainda não concluído: Renato Borghetti sacode uma milonga adorável. Hermeto, com a sanfona de oito baixos, faz uma "hipnose do forró". A mula solta o cabresto e desce a ribanceira sacolejando a cangalha.
Se eu pudesse, indicaria "Baião: 50 anos de Poesia, Ritmo e Emoção" para CD do ano.



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