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CRÍTICA
Romance é mais seco e mantém jogo de duplos
HEITOR FERRAZ MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
No universo ficcional de
Milton Hatoum, Manaus
sempre surge, como uma espécie de personagem, uma cidade
entre a província e a turbulência da metrópole, um canto do
mapa do país onde a vida parece sair dos modos mais arcaicos de produção para um capitalismo ruidoso e destruidor,
pois é sempre precário. Não só
Manaus mostra suas caras, fases e precariedades: seus personagens de "carne e osso" parecem sofrer de um desenraizamento e todo o passado de cada um deles é algo sempre nebuloso, com segredos.
Foi assim no belo romance de
estréia, "Relato de um Certo
Oriente"; o esquema se adensou em "Dois Irmãos". E retorna agora. Mas não se trata apenas de uma "variação sobre o
mesmo tema". A cada romance, Hatoum torce a cravelha
das situações morais familiares, busca levá-las ao limite,
com seus personagens desnorteados, sobrevivendo entre as
ruínas do passado e as ruínas
(ou cinzas) do presente.
Neste novo livro, abre mão
dos personagens de origem
árabe ou libanesa. Quase não
há estrangeiros. Essa mudança
já se faz sentir no próprio estilo
de Hatoum, que deixa de lado
as descrições quase que voluptuosas de comidas, cheiros,
ambientes carregados de figuras religiosas. É mais seco.
Mantendo o jogo de duplos
que havia em "Relato" e em
"Dois Irmãos", Hatoum agora
focaliza duas histórias que andam praticamente juntas e que
se desenrolam entre os anos 60
e 70. A do narrador, Lavo, órfão, e a de Mundo, filho do empresário Jano e da bela Alícia,
que, como Capitu, tem "olhos
de cigana". O centro nervoso é
a história de Mundo, um jovem
cuja rebeldia faz com que se vire contra o pai. Sua paixão é pela mãe, cujo passado é obscuro
e só aos poucos se revela ao leitor na narrativa conduzida em
primeira pessoa por Lavo, amigo de Mundo.
Nos romances de Hatoum,
há sempre um segredo que vai
sendo desvendado pouco a
pouco: é o segredo da origem.
Essa incerteza norteia toda a
estrutura do livro e obriga o leitor a reconstruir na cabeça uma
espécie de árvore genealógica
dos personagens: árvore cujos
galhos tão intrincados aos poucos se entregam, numa investigação sem fim, nas conversas e
revelações dos personagens. O
mais interessante é que essa
própria origem, quando descoberta, passa a ser apenas uma
informação esbatida. É como
se essa busca caísse sempre no
vazio. Ela já não é mais suficiente para mudar o destino
dos personagens. Reatar esse
nexo com o passado -e essa é
a grande dor- não garante
mais nada. Tudo vira cinza,
apenas cinza.
Heitor Ferraz Mello é autor de "Coisas Imediatas (1996-2004)" (7 Letras)
Cinzas do Norte
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (312 págs.)
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