São Paulo, sábado, 13 de agosto de 2005

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CRÍTICA

Romance é mais seco e mantém jogo de duplos

HEITOR FERRAZ MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No universo ficcional de Milton Hatoum, Manaus sempre surge, como uma espécie de personagem, uma cidade entre a província e a turbulência da metrópole, um canto do mapa do país onde a vida parece sair dos modos mais arcaicos de produção para um capitalismo ruidoso e destruidor, pois é sempre precário. Não só Manaus mostra suas caras, fases e precariedades: seus personagens de "carne e osso" parecem sofrer de um desenraizamento e todo o passado de cada um deles é algo sempre nebuloso, com segredos.
Foi assim no belo romance de estréia, "Relato de um Certo Oriente"; o esquema se adensou em "Dois Irmãos". E retorna agora. Mas não se trata apenas de uma "variação sobre o mesmo tema". A cada romance, Hatoum torce a cravelha das situações morais familiares, busca levá-las ao limite, com seus personagens desnorteados, sobrevivendo entre as ruínas do passado e as ruínas (ou cinzas) do presente.
Neste novo livro, abre mão dos personagens de origem árabe ou libanesa. Quase não há estrangeiros. Essa mudança já se faz sentir no próprio estilo de Hatoum, que deixa de lado as descrições quase que voluptuosas de comidas, cheiros, ambientes carregados de figuras religiosas. É mais seco.
Mantendo o jogo de duplos que havia em "Relato" e em "Dois Irmãos", Hatoum agora focaliza duas histórias que andam praticamente juntas e que se desenrolam entre os anos 60 e 70. A do narrador, Lavo, órfão, e a de Mundo, filho do empresário Jano e da bela Alícia, que, como Capitu, tem "olhos de cigana". O centro nervoso é a história de Mundo, um jovem cuja rebeldia faz com que se vire contra o pai. Sua paixão é pela mãe, cujo passado é obscuro e só aos poucos se revela ao leitor na narrativa conduzida em primeira pessoa por Lavo, amigo de Mundo.
Nos romances de Hatoum, há sempre um segredo que vai sendo desvendado pouco a pouco: é o segredo da origem. Essa incerteza norteia toda a estrutura do livro e obriga o leitor a reconstruir na cabeça uma espécie de árvore genealógica dos personagens: árvore cujos galhos tão intrincados aos poucos se entregam, numa investigação sem fim, nas conversas e revelações dos personagens. O mais interessante é que essa própria origem, quando descoberta, passa a ser apenas uma informação esbatida. É como se essa busca caísse sempre no vazio. Ela já não é mais suficiente para mudar o destino dos personagens. Reatar esse nexo com o passado -e essa é a grande dor- não garante mais nada. Tudo vira cinza, apenas cinza.


Heitor Ferraz Mello é autor de "Coisas Imediatas (1996-2004)" (7 Letras)

Cinzas do Norte
    
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (312 págs.)


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