São Paulo, sábado, 13 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINZAS QUE QUEIMAM

Milton Hatoum diz que o regionalismo se esgotou e critica autores que querem "destruir o romance"

"É a coisa mais amarga que já escrevi"

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a continuação da entrevista com o escritor Milton Hatoum. (JULIÁN FUKS)

 

Folha - O que você procura com seus livros?
Hatoum -
Eu quero viver de literatura, mas sem escrever para vender, para alcançar sucesso comercial. Todo escritor quer ter leitores, de preferência bons. São os bons leitores que justificam a literatura. Não estou preocupado em ser o melhor. A literatura latino-americana já tem seus grandes expoentes: Borges, Cortázar, Bioy Casares, Guimarães Rosa, Machado, todos escritores de grande envergadura.

Folha - Qual é, então, sua intenção? Fazer uma literatura mais do Norte, de Manaus, essa cidade que está em todos os seus romances?
Hatoum -
A literatura regionalista já se esgotou há muito tempo. O regionalismo é uma visão muito estreita da geografia, do lugar, da linguagem. É uma camisa de força que encerra valores locais. Minha idéia é penetrar em questões locais, em dramas familiares, e dar um alcance universal para elas. O assunto, a matéria, não são garantia da boa narrativa. O que vale é a fartura da linguagem, a forma.

Folha - Mas quais as características de Manaus que você considera literariamente interessantes?
Hatoum -
Manaus sempre foi uma cidade ao mesmo tempo cosmopolita e bastante provinciana, por seu isolamento geográfico. E a província tem uma coisa importante para quem escreve. Nas cidades muito grandes, se diluem as anedotas, os eventos escabrosos, as situações dramáticas. Ora, na província, não. A província é um palco. Ali estão os loucos, os adúlteros, os assassinos, os corruptos, os bandidos. A província é a metonímia de um grande teatro. E isso é o ideal para quem quer construir personagens.

Folha - Por que você sempre trata de famílias, de relações familiares conservadoras e problemáticas?
Hatoum -
A família sempre foi um dos núcleos dramáticos do romance. O drama familiar é uma de suas grandes vertentes desde o século 18. É o ponto de partida para uma rede de subtemas que o romance insinua: políticos, históricos, urbanos. E é a primeira grande convenção. E também o núcleo menor de uma convenção maior, de um regimento.

Folha - Em "Cinzas do Norte", você soma o drama familiar ao romance epistolar, que são pilares clássicos do romance...
Hatoum -
O questionamento do gênero não é nada novo. Se engana quem acha que faz literatura de vanguarda ao romper com o gênero. Isso vem do romantismo, e a literatura fragmentada é quase tão velha quanto o romance. Fico impressionado com alguns escritores que estão mais preocupados em destruir o romance do que em escrever um bom livro.

Folha - "Ou a obediência estúpida ou a revolta", diz um personagem seu. Para a construção do romance, isso não é válido?
Hatoum -
É uma frase roubada do Balzac que se refere ao questionamento moral do personagem. "Cinzas do Norte" é uma espécie de educação sentimental. É meu livro mais flaubertiano nesse sentido. É um romance da desilusão, sobretudo. Não sobra nada. É, de longe, a coisa mais amarga que eu já escrevi. Tudo termina em cinzas: a cidade, as vidas, os personagens. É um romance da dissipação, dessas vidas que se esvaem. Tudo conflui para o trágico. Salvo a literatura.

Folha - Citações e episódios da vividos por você ou por outros. Essas são suas fontes?
Hatoum -
A literatura se constrói por duas coisas básicas: a tradição literária e a experiência. De resto, há a configuração desses elementos pela linguagem. O romance é sobretudo a arte da paciência. Eu demoro anos para escrever, esboço tramas e subtramas antes de começar. E começo pelo fim. É como atravessar uma ponte pelo lado oposto. A narrativa é essa travessia, mas eu sinto uma necessidade de saber me situar antes nos dois extremos. Entre as duas extremidades é que entra o imprevisível, a imaginação.


Texto Anterior: Cinzas que queimam
Próximo Texto: Crítica: Romance é mais seco e mantém jogo de duplos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.