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CINZAS QUE QUEIMAM
Milton Hatoum diz que o regionalismo se esgotou e critica autores que querem "destruir o romance"
"É a coisa mais amarga que já escrevi"
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia a seguir a continuação da entrevista com o escritor Milton
Hatoum.
(JULIÁN FUKS)
Folha - O que você procura com
seus livros?
Hatoum - Eu quero viver de literatura, mas sem escrever para
vender, para alcançar sucesso comercial. Todo escritor quer ter leitores, de preferência bons. São os
bons leitores que justificam a literatura. Não estou preocupado em
ser o melhor. A literatura latino-americana já tem seus grandes expoentes: Borges, Cortázar, Bioy
Casares, Guimarães Rosa, Machado, todos escritores de grande envergadura.
Folha - Qual é, então, sua intenção? Fazer uma literatura mais do
Norte, de Manaus, essa cidade que
está em todos os seus romances?
Hatoum - A literatura regionalista já se esgotou há muito tempo. O
regionalismo é uma visão muito
estreita da geografia, do lugar, da
linguagem. É uma camisa de força
que encerra valores locais. Minha
idéia é penetrar em questões locais, em dramas familiares, e dar
um alcance universal para elas. O
assunto, a matéria, não são garantia da boa narrativa. O que vale é a
fartura da linguagem, a forma.
Folha - Mas quais as características de Manaus que você considera
literariamente interessantes?
Hatoum - Manaus sempre foi
uma cidade ao mesmo tempo
cosmopolita e bastante provinciana, por seu isolamento geográfico. E a província tem uma coisa
importante para quem escreve.
Nas cidades muito grandes, se diluem as anedotas, os eventos escabrosos, as situações dramáticas.
Ora, na província, não. A província é um palco. Ali estão os loucos,
os adúlteros, os assassinos, os corruptos, os bandidos. A província é
a metonímia de um grande teatro.
E isso é o ideal para quem quer
construir personagens.
Folha - Por que você sempre trata
de famílias, de relações familiares
conservadoras e problemáticas?
Hatoum - A família sempre foi
um dos núcleos dramáticos do romance. O drama familiar é uma
de suas grandes vertentes desde o
século 18. É o ponto de partida para uma rede de subtemas que o
romance insinua: políticos, históricos, urbanos. E é a primeira
grande convenção. E também o
núcleo menor de uma convenção
maior, de um regimento.
Folha - Em "Cinzas do Norte", você soma o drama familiar ao romance epistolar, que são pilares
clássicos do romance...
Hatoum - O questionamento do
gênero não é nada novo. Se engana quem acha que faz literatura de
vanguarda ao romper com o gênero. Isso vem do romantismo, e
a literatura fragmentada é quase
tão velha quanto o romance. Fico
impressionado com alguns escritores que estão mais preocupados
em destruir o romance do que em
escrever um bom livro.
Folha - "Ou a obediência estúpida
ou a revolta", diz um personagem
seu. Para a construção do romance,
isso não é válido?
Hatoum - É uma frase roubada
do Balzac que se refere ao questionamento moral do personagem.
"Cinzas do Norte" é uma espécie
de educação sentimental. É meu
livro mais flaubertiano nesse sentido. É um romance da desilusão,
sobretudo. Não sobra nada. É, de
longe, a coisa mais amarga que eu
já escrevi. Tudo termina em cinzas: a cidade, as vidas, os personagens. É um romance da dissipação, dessas vidas que se esvaem.
Tudo conflui para o trágico. Salvo
a literatura.
Folha - Citações e episódios da vividos por você ou por outros. Essas
são suas fontes?
Hatoum - A literatura se constrói
por duas coisas básicas: a tradição
literária e a experiência. De resto,
há a configuração desses elementos pela linguagem. O romance é
sobretudo a arte da paciência. Eu
demoro anos para escrever, esboço tramas e subtramas antes de
começar. E começo pelo fim. É
como atravessar uma ponte pelo
lado oposto. A narrativa é essa
travessia, mas eu sinto uma necessidade de saber me situar antes
nos dois extremos. Entre as duas
extremidades é que entra o imprevisível, a imaginação.
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