São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
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Hitchcock, 100


Centenário do mestre do suspense é comemorado em Oxford e no MoMA de Nova York



As séries de filmes realizadas pelo diretor inglês para a televisão contêm obras-primas que caíram no esquecimento


AMIR LABAKI
enviado especial a Nova York

O continente submerso da obra de Alfred Hitchcock é sua produção televisiva. Entre meados das décadas de 50 e 60, o cineasta coordenou duas telesséries de suspense ("Alfred Hitchcock Presents", na CBS, 1955-65, e "The Alfred Hitchcock Hour", NBC, 1962-65) e colaborou com episódios isolados para duas outras ("Suspicion", 1957-59, e "Ford Startime", 59, ambas na NBC). No total, Hitch acabou dirigindo nada menos que 20 telefilmes, 17 de curta metragem (25 min) e apenas três de média (50 min).
No período entre "Revenge" (Vingança, 55) e "I Saw the Whole Thing" (Eu Vi Tudo, 62), Hitchcock gozava o auge de sua forma. Não por coincidência, é a época em que rodava para a tela grande vários de seus principais filmes, da segunda versão para "O Homem Que Sabia Demais" a "O Homem Errado", de "Um Corpo Que Cai" a "Psicose". Seus telefilmes nada ficam a dever a eles.
O preconceito contra o meio, contra Hitch e, posteriormente, certa dificuldade de acesso ao pacote inteiro condenou ao esquecimento a arte de seus telefilmes.
Embora a bibliografia hitchcockiana jamais tenha parado de crescer, nenhum volume foi até hoje dedicado exclusivamente à sua teleprodução. Pior: mesmo os grandes estudos de sua obra passaram, de maneira geral, ao largo dos telefilmes, de Donald Spoto a François Truffaut, de Peter Bogdanovich a Robin Wood. Exceções parciais são a biografia semi-oficial escrita por John Russel Taylor e o indispensável, do ponto de vista meramente informativo, "The Definitive Filmography" de Jane E. Sloan (University of California Press, 95).
Uma voz solitária ergueu-se, no calor da hora, em defesa dos episódios. Um dos principais críticos americanos de extração marxista, Dwight Macdonald, autor da teoria da cultura alta e baixa, foi um pioneiro entusiasta dessa produção. Macdonald posicionou os telefilmes no topo da produção hitchcockiana. Alguns "são tolos, alguns simplesmente repugnantes, alguns admiravelmente engenhosos, mas quase todos escalaram bons elencos e foram precisamente dirigidos", escreveu. "Há uma disciplina automática em ter apenas meia hora, assim como em ter apenas 14 versos para um soneto."
É preciso ir ao Museum of Television and Radio (MTR) de Nova York para encontrar a coleção original completa (há ainda a íntegra do fraco remake de "Alfred Hitchcock Presents", de 85). Em maio passado, o museu ousou na celebração antecipada do presente centenário, apresentando uma raríssima retrospectiva. Tomara venha a catalisar finalmente a justa revelação da grandeza do lote.
Entre novembro e janeiro últimos, por cortesia do MTR, tive a chance de fazer o intensivo deste "telehitchcock". O impacto foi avassalador. Ao menos sete dos telefilmes equiparam-se, sem favor, ao melhor Hitchcock, seja "Psicose" ou "Janela Indiscreta". "Psicose", aliás, traz as marcas da criatividade exigida pela economia dos meios daquelas teleproduções. Sem exagero, pode-se dizer que se trata de uma espécie de telefilme feito para cinema.
No que toca o esquema de produção, Hitch estendeu para o trabalho em TV o mesmo método desenvolvido em cinema, recorrendo a uma equipe coesa e fixa tanto quanto possível.
Se o fotógrafo Robert Burns, o montador George Tomasini e a produtora-assistente Peggy Robertson merecem ser considerados fiéis co-autores da nata da produção hitchcockiana em sua fase norte-americana, o mesmo vale, para os telefilmes, em relação ao fotógrafo John L. Russell, Jr, os montadores Edward W. William e Richard G. Wray e a produtora-assistente Joan Harrison.
Hitch também levou para a TV a genial sacada publicitária de assinar cada obra com sua presença em carne e osso. Em vez das breves aparições de seus filmes, o cineasta apresentava e encerrava, sempre com textos hilariantes, cada um dos episódios de suas telesséries, dirigidos ou não por ele.
Já nos dois primeiros, "Revenge" e "Breakdown" (Esgotamento Nervoso), respectivamente de outubro e novembro de 55, Hitch definiu os contornos básicos de sua produção televisiva. ""Alfred Hitchcock Presents" é uma série de histórias de suspense e mistério. É mais que mero entretenimento. Em cada uma de nossas histórias, tentamos apresentar uma lição que frise uma moral -como nossas mães faziam."
Talvez em nenhum outro recorte da obra hitchcockiana os reflexos da culpa católica e do rigoroso moralismo vitoriano sejam tão evidentes, mesmo quando distorcidos pelas lentes da ironia. Os telefilmes podem ser divididos, de maneira geral, em dois grandes grupos.
Nada menos que metade é uma variação em torno da máxima de que o crime não compensa. Em seis deles, porém, nada é tão simples e tampouco o mundo tão perfeito. A justiça vinga, sim, mas apenas após encerrada a trama, por meio de desfechos narrados por Hitch.
Em "Revenge", um marido mata o pretenso molestador de sua perturbada mulher, para logo perceber ter sido induzido ao erro por ela. "The Perfect Crime" (O Crime Perfeito, outubro de 57) e "Arthur" (setembro de 59) apresentam os triunfos iniciais de misantropos de gênio, obcecados pela arte do mal sem pena.
Se em "One More Mile to Go" (A Apenas uma Milha, abril de 57) uma farol traseiro quebrado frustra a fuga de um marido que leva o cadáver da mulher no porta-malas, "Lamb to the Slaughter" (Carneiro para a Matança, abril de 58) celebra cinicamente a ousadia de uma mulher ciumenta que mata o marido com uma perna de carneiro e depois a serve para os policiais, destruindo a prova do crime.
Mais de um terço dos telefilmes representa, por sua vez, parábolas em torno de confusões de identidade, retomando o típico drama hitchcockiano do homem (ou mulher) errado(a). Em "Incident at a Corner" (Incidente na Esquina, abril de 60), Hitch ousa tratar de pedofilia, encenando a falsa acusação a um funcionário veterano de uma escola. Outro acidente automobilístico forja mais um réu injustiçado em "I Saw The Whole Thing" (outubro de 62).
As três variações mais originais e perturbadoras deste tema não lidam com acusações mal direcionadas. "The Case of Mr. Pelham" (dezembro de 55) é uma fábula kafkiana sobre um homem que descobre seu cotidiano invadido por um duplo. Já em "Banquo's Chair" (A Cadeira de Banquo, maio de 59), o fantasma de uma anciã assassinada substitui a atriz escolhida para passar por ela na armadilha preparada para desmascarar seu matador. Por fim, em "The Crystal Trench" (A Trincheira de Cristal, outubro de 59), a descoberta de um cadáver num pico gelado dos Alpes, 40 anos depois de sua morte, revela o absurdo por trás do trauma verdadeiro de sua falsa viúva.
Pela precisão na fatura e originalidade dramática, os citados "Mr. Pelham", "Whole Thing", "Lamb" e "Arthur" são quatro das sete obras-primas. O mesmo vale para "Bang! You're Dead!" (Bang! Você Está Morto, outubro de 61), um brado contra o livre comércio de armas nos EUA. Billy Mummy, pouco antes de virar o Will de "Perdidos no Espaço", interpreta um garoto que sai pela cidade apontando uma revólver carregado, que acredita ser um brinquedo trazido pelo tio.
O originalíssimo uso dramático do som e a incrível eficiência dos econômicos movimentos de câmera destacam, para muito além do trivial, os episódios "Breakdown" e "Four O'Clock" (Quatro Horas, setembro de 57). Neste último, Hitch resume toda sua teoria sobre a primazia do suspense sobre a surpresa, ao imobilizar um marido ciumento ao lado da bomba-relógio que preparara para matar a esposa e o pretenso amante. O tamanho da tela jamais limitou a dimensão de artistas como Hitchcock.


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