São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
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GASTRONOMIA
O suspense e o suflê

NINA HORTA
Colunista da Folha

Assistindo a filmes de Hitchcock é fácil perceber que o assunto comida é importante para ele. Jamais se esquece de alimentar os atores. Apresenta refeições, festinhas de aniversário, piqueniques, descobre crimes e desenrola meadas à mesa. Em "Janela Indiscreta", é uma mãe zelosa para James Stewart, que está de perna quebrada. Não o deixa passar fome. Sanduíches, leite e até uma encomenda do 21: uma lagosta grelhada com direito a champanhe e a Grace Kelly como garçonete.
Há alguns anos fiz uma estatística sobre o que mais se comia nos seus filmes, e a galinha ganhou em disparada. O motivo, não sei. Ele próprio comia de tudo. Quando garoto, de classe média, a Inglaterra em crise, entupia-se de batatas de todos os formatos e feitios. Batatas feitas pela mãe, boa cozinheira. Foi engordando.
Todo gordo sabe que comer conforta o corpo e a alma. Hitchcock não fazia exercício nenhum, pensava furiosamente e comia.
Por incrível que pareça, detestava suspense. "Odeio suspense e é por isso que não admito que façam suflês na minha casa. Meu forno nem tem porta de vidro! Imagine esperar por 40 minutos para descobrir, afinal, que o suflê embatumou? Não aguento."
Suas casas funcionavam bem, dirigidas por Alma, sua mulher, e duas empregadas. Recebiam muito, com alguma formalidade, comida sempre muito boa. Hitchcock achava que reuniões com comida e bebida fluíam mais relaxadas. Quando começava a elaborar um filme, convidava os colaboradores para sua casa, onde os recebia de camisolão de dormir e conversavam sobre uma boa torta de rins e muito gim e brandy.
Quando foi aos Estados Unidos pela primeira vez, o restaurante da moda era o Clube 21, que tinha altos portões de ferro. Quase não entrou com medo de sentir claustrofobia, mas uma vez lá dentro pediu um gordo bife e de sobremesa um sorvete. Acabado o sorvete, outro bife e outro sorvete. Na terceira pedida, o restaurante inteiro já zumbia com a fofoca.
Elvis Presley tem uma história parecida com sundaes, acho que cinco sundaes, mas caiu desmaiado no último. Hitchcock não. Tomou um chá forte de um só gole e estava pronto para outra. Ou não. Desse dia em diante aprendeu a comer pouco em público e muito em casa, escondido de repórteres e fotógrafos.
Chegou a quase 200 kg e ficou com medo de morrer, calcanhares inchados e dores nas costas. Começou um regime de café preto e bifinhos de frango, refeições que contrastavam com as antigas. Galinha assada, presunto, molhos, batatas, salada, sobremesa e vinho. Efeito sanfona. Emagrecia, engordava, emagrecia, ficava mais gordo que da vez anterior.
Viajando mundo afora, exibia seu lado gourmet mandando vir suflê de lagosta do Maxim's e linguados de Dover.
Terá alguma importância saber o que ele comia? Numa análise mais aprofundada, talvez. Algum psicólogo pode achar analogias entre seus filmes e sua gula. Sempre achou que a comida substituía o sexo. Engordava quando nervoso e rejeitado por alguma de suas heroínas louras e esguias. Ou emagrecia para ser fotografado junto a Tippi Hedren.
Não gostava do processo da alimentação, que lhe parecia grosseiro. Queria estar saciado. A ingestão lhe trazia à mente a perturbação e a náusea.
As cenas de refeições, nos filmes, muitas vezes antecedem revelações. A privação de sexo o inspirava? Ou só comia mais? A comida o consolava? Ele mesmo responde: "Encontro satisfação na comida. É mais um processo mental do que físico. Há tanta antecipação prazerosa em esperar um bom prato quanto em esperar um passeio ou um show. Existem dois modos de comer. Para sobreviver ou por prazer. Eu como por prazer". E nós também, com muito prazer, comemoramos seus 100 nos, Mr. Hitchcock!

E-mail: ninahort@uol.com.br


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