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GASTRONOMIA
O suspense e o suflê
NINA HORTA
Colunista da Folha
Assistindo a filmes de Hitchcock é fácil perceber que o assunto comida é importante para ele.
Jamais se esquece de alimentar os
atores. Apresenta refeições, festinhas de aniversário, piqueniques,
descobre crimes e desenrola meadas à mesa. Em "Janela Indiscreta", é uma mãe zelosa para James
Stewart, que está de perna quebrada. Não o deixa passar fome.
Sanduíches, leite e até uma encomenda do 21: uma lagosta grelhada com direito a champanhe e a
Grace Kelly como garçonete.
Há alguns anos fiz uma estatística sobre o que mais se comia nos
seus filmes, e a galinha ganhou
em disparada. O motivo, não sei.
Ele próprio comia de tudo. Quando garoto, de classe média, a Inglaterra em crise, entupia-se de
batatas de todos os formatos e feitios. Batatas feitas pela mãe, boa
cozinheira. Foi engordando.
Todo gordo sabe que comer
conforta o corpo e a alma. Hitchcock não fazia exercício nenhum,
pensava furiosamente e comia.
Por incrível que pareça, detestava suspense. "Odeio suspense e é
por isso que não admito que façam suflês na minha casa. Meu
forno nem tem porta de vidro!
Imagine esperar por 40 minutos
para descobrir, afinal, que o suflê
embatumou? Não aguento."
Suas casas funcionavam bem,
dirigidas por Alma, sua mulher, e
duas empregadas. Recebiam muito, com alguma formalidade, comida sempre muito boa. Hitchcock achava que reuniões com comida e bebida fluíam mais relaxadas. Quando começava a elaborar
um filme, convidava os colaboradores para sua casa, onde os recebia de camisolão de dormir e conversavam sobre uma boa torta de
rins e muito gim e brandy.
Quando foi aos Estados Unidos
pela primeira vez, o restaurante
da moda era o Clube 21, que tinha
altos portões de ferro. Quase não
entrou com medo de sentir claustrofobia, mas uma vez lá dentro
pediu um gordo bife e de sobremesa um sorvete. Acabado o sorvete, outro bife e outro sorvete. Na
terceira pedida, o restaurante inteiro já zumbia com a fofoca.
Elvis Presley tem uma história
parecida com sundaes, acho que
cinco sundaes, mas caiu desmaiado no último. Hitchcock não. Tomou um chá forte de um só gole e
estava pronto para outra. Ou não.
Desse dia em diante aprendeu a
comer pouco em público e muito
em casa, escondido de repórteres
e fotógrafos.
Chegou a quase 200 kg e ficou
com medo de morrer, calcanhares inchados e dores nas costas.
Começou um regime de café preto e bifinhos de frango, refeições
que contrastavam com as antigas.
Galinha assada, presunto, molhos, batatas, salada, sobremesa e
vinho. Efeito sanfona. Emagrecia,
engordava, emagrecia, ficava
mais gordo que da vez anterior.
Viajando mundo afora, exibia
seu lado gourmet mandando vir
suflê de lagosta do Maxim's e linguados de Dover.
Terá alguma importância saber
o que ele comia? Numa análise
mais aprofundada, talvez. Algum
psicólogo pode achar analogias
entre seus filmes e sua gula. Sempre achou que a comida substituía
o sexo. Engordava quando nervoso e rejeitado por alguma de suas
heroínas louras e esguias. Ou
emagrecia para ser fotografado
junto a Tippi Hedren.
Não gostava do processo da alimentação, que lhe parecia grosseiro. Queria estar saciado. A ingestão lhe trazia à mente a perturbação e a náusea.
As cenas de refeições, nos filmes, muitas vezes antecedem revelações. A privação de sexo o inspirava? Ou só comia mais? A comida o consolava? Ele mesmo responde: "Encontro satisfação na
comida. É mais um processo
mental do que físico. Há tanta antecipação prazerosa em esperar
um bom prato quanto em esperar
um passeio ou um show. Existem
dois modos de comer. Para sobreviver ou por prazer. Eu como por
prazer". E nós também, com muito prazer, comemoramos seus 100
nos, Mr. Hitchcock!
E-mail: ninahort@uol.com.br
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