|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Fim do mundo mais uma vez adiado
Não tenho certeza, mas acho
que, como todo mundo, já corri
alguns riscos ao longo da vida.
Nada de trágico até aqui, o que
não chega a ser vantagem. Pouco
me arrisquei, nunca ateei fogo às
vestes, não me atirei do alto do
Corcovado e tenho como saudável
norma de vida evitar a culinária
baiana. Mesmo assim, fiquei
preocupado quando, na segunda-feira, cheguei em casa à hora em
que a cozinheira, o motorista e a
faxineira almoçavam na copa.
Surpreendi a conversa desses
amigos que são parte do meu cotidiano e me ajudam a viver e não a
morrer. Falavam sobre o fim do
mundo. Bem mais informados do
que eu, que não ouço rádio e só
leio nos jornais o que não me interessa (política, arte, economia e
outras inutilidades).
Eles estavam preocupados com
o noticiário de algumas emissoras, dessas que varam a noite
dando conta de tudo o que acontece ou deixa de acontecer. O motorista chegou a perguntar se devia mesmo encher o tanque para
o resto da semana, segundo ele, a
gasolina devia dar até o dia fatal
que aguardava o mundo.
Pois fiquei sabendo que este
mesmo mundo estava mais uma
vez para acabar, acho que na
quarta-feira ou mesmo na sexta,
que é data lúgubre, sexta-feira 13
-e de agosto ainda por cima.
Não sei se a previsão nasceu dos
búzios de um pai-de-santo ou de
sofisticada equação de algum
cientista. Como sempre, há um
versinho de Nostradamus que serve para qualquer catástrofe ou até
mesmo para nenhuma catástrofe.
O fato é que o planeta Terra iria
se desintegrar, ou pelo impacto de
um gigantesco asteróide ou pela
explosão de suas entranhas que
vomitariam fogo em cima de todos nós. Como sempre, também, a
Lua estaria envolvida nisso, a
mesma Lua que Puccini chamou
de "amante descorada dos mortos".
Não chega a ser novidade essa
história de fim do mundo. Em
criança, ouvi e dei crédito à mesmíssima profecia. Minha mãe
chegou a fazer um estoque de velas bentas na matriz de Nossa Senhora da Guia, velas abençoadas
por frei Tiago Mattioli -um frade da Ordem dos Servos de Maria,
nascido em Cremona, terra de
Stradivarius-, que faturou horrores à custa da desgraça universal anunciada num jornal radiofônico que tinha como patrocinador o colírio Moura Brasil (duas
gotas, dois minutos, dois olhos
claros e bonitos).
Diziam que somente as velas
bentas dariam luz para iluminar
os três dias que antecederiam o
cataclismo final. Aproveitaríamos
esses dias para fazer, como os artistas de teatro, um laboratório do
fim do mundo, dedicando-os às
despedidas, pedindo desculpas ao
próximo e perdão ao Todo-Poderoso.
O mundo não acabou naquela
ocasião, ele não continuou melhor do que era antes. Pelo contrário, agravou seus pecados. E também não acabou desta vez -o
que é pena.
Já que a morte individual é certa, morrer de fim de mundo tem
duas atrações suplementares. Primeira: o espetáculo em si, que seria literalmente o "maior espetáculo da Terra" sem produção de
DeMille e sem direção de Spielberg, excelente garantia de bom
gosto. Nem mesmo os fazedores de
efeitos especiais do cinema e da
TV seriam capazes de produzir o
show final.
Segunda e a mais importante
atração: o mundo acabando, nada teríamos a fazer, de maneira
que não haveria mais história,
nem manhãs, nem tardes, nem
flores brotando, nem mulheres,
nem prazeres.
O chato da morte individual é
que a gente vai embora mas os
outros continuam. Exemplo: Napoleão, que foi o homem mais poderoso de seu tempo, nunca acendeu uma lâmpada elétrica, nunca
usou um aspirador de pó, nunca
ouviu a dupla Leandro e Leonardo nem se comoveu com o primeiro aniversário da filha de Xuxa. O
fim do mundo globalizado e instantâneo nos tornaria absolutos,
como aquele rei da França que dizia: "Depois de mim, o dilúvio!"
É famosa a passagem da vida de
São Luiz Gonzaga, muito lembrada nos conventos e prostíbulos. O
filho de Branca de Castela estava
no recreio, jogando um troço
qualquer, quando lhe perguntaram o que faria se o mundo fosse
acabar naquele momento. O santo respondeu: "Continuaria fazendo o que estou fazendo agora".
Falei acima que o exemplo do
protetor da castidade de todos nós
é sempre lembrado nos conventos
e bordéis por óbvios motivos. Nos
conventos, para que todos continuem a guardar a castidade. Nos
puteiros, para que todos continuem pecando contra. O fim do
mundo não deve prejudicar essas
coisas.
Tomei informações para saber
se o mundo desta vez acabaria
mesmo. Telefonei para o Jânio de
Freitas, para o Ruy Castro e para
meu irmão mais velho, cujo mundo acaba toda vez que o Flamengo perde. No dia seguinte, li os jornais. Ou deu bobeira geral na turma e foram todos furados -o que
não chega a ser raridade- ou tudo continua na mesma. Com uma
novidade apenas: na impossibilidade de acabarem com o mundo,
ACM e FHC querem acabar com
a pobreza.
Texto Anterior: Noite Ilustrada - Erika Palomino: Depois daqui do fim do mundo você vai para onde? Próximo Texto: Cinema: Manifesto lança Dogma à brasileira Índice
|