São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
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O DOGMA E O DESEJO

da Redação

Leia, a seguir, a íntegra do manifesto de Marcelo Masagão.


"Dogmático ou desejantes?
Apesar da culpa, apesar do dogma, os dinamarqueses e seus recentes filmes nos colocam uma questão fundamental: o prazer de fazer filmes. É o que se vê em cada centímetro de videopelícula ali realizado. No meio daquela narrativa ninguém se pergunta se está vendo vídeo ou película? Se é arte ou mercado? Se é doce ou salgado? É só um filme bacana em que talvez o único dogma existente seja o fato de se ter um bom roteiro e muito desejo de realizá-lo.
Nós, os desejantes tropicais, atualmente estamos mais para o dogma do comércio do que para o do desejo. Nosso negócio é discutir estratégias, leis de incentivo, certificados, agentes intermediários... O Zé e o Chico.
Tudo verdade (ou mentira).
No Brasil tudo pode.
Dogma 1. Viva o sabonete
Apesar dos recursos destinados à cultura serem ínfimos, quem gerencia seu destino são aqueles que entendem de sabonete. Diretores e gerentes de marketing passaram a ser experts em cultura. E tudo isso sem tirar nenhum do bolso, como no caso da Lei do Audiovisual. O ministério nos entrega papeletes denominados certificados, que, na esmagadora maioria das vezes, morrem na praia. Afinal, não são todos que têm bons contatos em grandes empresas ou nas estatais.
Santa Rio Filme.
Não seria mais adequado conversarmos de cultura com quem entende do assunto? A Rio Filme ou o Sesc São Paulo são instituições que administram dinheiro público com fins culturais e o fazem muito bem. Ali não se administra cultura, se promove a cidadania cultural, em que artistas e produtores discutem seus produtos com administradores sérios e formados na área. Ali, com recursos muito inferiores aos do ministério, se faz muito mais pelo cinema, pela cultura.
"Mas a Embrafilme não funcionava", dizem alguns. Mentira. A Embrafilme teve diversas fases e administradores melhores ou piores. Mas não nos esqueçamos que sob sua tutela o cinema brasileiro era muito mais visto do que hoje.
Fica uma pergunta: É melhor discutir o fazer filmes com administradores culturais (melhores ou piores) ou com diretores e gerentes de marketing? Se as empresas e empresários se interessarem por produtos culturais que botem suas mãos em seus bolsos e façam cheques. Neste caso, parece legítimo que eles decidam e escolham o projeto que lhes convenham.
Dogma 2. A Baleia e o Bidê.
Distribuir filmes no Brasil é como criar baleias em um bidê. Apesar de já existir uma lei de cota de tela, nosso adorável ministério não mexe palha para aplicá-la. Afinal, a legitimidade de proteger mercados não combina com a atual cartilha da corte.
Dogma 3. Orçamentos elefânticos e o Garrincha.
Se o público médio para filmes nacionais é de 30 mil espectadores e o custo médio de cada produção é de R$ 3 milhões, cada espectador acaba custando cerca de R$ 100. É meio complicado, né?
Viva o Garrincha.
Porque a política pública não estimula os cineastas a fazerem filmes de baixo orçamento? A tecnologia possibilita que hoje se possam fazer ousados projetos com não mais do que R$ 1 milhão. Os gringos, sejam eles dinamarqueses, franceses ou os independentes radicais americanos, já estão nos mostrando que é possível fazer isto.
Onde andará o Garrincha e seus dribles?
O fazer, fazer, fazer, bailar, bailar...
E, afinal, por que bailar se a única música que se dança hoje é a dança do mercado? Será que, além de se preocupar em estimular a distribuição, o papel principal do ministério não é o de promover a realização de uma grande quantidade de filmes de baixo orçamento? Mais quantidade, menos eixo Rio-SP e principalmente a possibilidade de exercer a profissão com constância e não de cinco em cinco arrastados anos.
Dogma 4. A Família Monofásica e a Família Polifônica.
Quem serão mais corporativos: os cineastas brasileiros, os metalúrgicos do ABC ou os médicos de Bauru? O vírus hollywoodiano espalha-se por todos os cantos. Cinematografias nacionais resistem e aderem à linguagem deles com ou sem sutileza. Não existe um só cinema brasileiro, iraniano ou italiano.
Poderíamos dividir esta família em pelo menos dois blocos: aqueles que, por meio de seus filmes, estimulam os neurônios e aqueles que deixam nossos neurônios muito aflitos e entediados. Estes últimos são aqueles que em geral estão muito preocupados com o mercado, com o público médio...
A outra família é uma família polifônica, em que criadores estão preocupados em experimentar linguagens das formas mais diferentes e singulares possíveis. Esta família normalmente é pouco articulada politicamente mas faz mais sucesso com a crítica e não raro com o público. Seus orçamentos e verbas de mídia costumam ser bem mais modestos que os da família monofásica.
Dogma 5. Baratas.
Ao mercado, as baratas.
À cultura, os toros.
A sensibilidade é digital.
Dogma único. Façamos filmes baratos."


Este manifesto estará disponível na Internet para adesões e discussões. Contatos com o zelador do site e também cineasta Marcelo Masagão. E-mail: marcelomasgao@uol.com.br Site: www.neoroniosaflitos.com.br


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