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Aldus, Vera Fischer, Dia da Imprensa e as ONGs
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Está na contracapa: a leitura é a
mais civilizada das paixões. É
uma destas obras que se ama a
primeira vista, como objeto e
como promessa de prazer, pelo
tato, pelas imagens, pelo cheiro,
pela narrativa e, óbvio, pelo
assunto - um livro sobre livros.
Não muito volumoso, mas, como
dizia Otto Lara Resende, desses
que mantemos em pé na estante,
"Uma História da Leitura" (Cia
das Letras, 405 págs.), do
argentino-canadense Alberto
Manguel, é uma viagem pela
história da conservação e difusão
do saber. Numa época em que ler
converteu-se em ato político,
vale a pena entender como
chegamos a isso.
O livro de Manguel junta-se à
nova versão do compêndio de
Wilson Martins, "A Palavra
Escrita" (2a. edição, Ática, 1996),
e à pesquisa de Marisa Lajolo e
Regina Zilberman, "A Formação
da Leitura no Brasil" (Ática,
1996), formando um sólido tripé
referencial para quem ainda
cultiva as virtudes da
curiosidade.
Manguel e Martins tratam de
uma figura fascinante, mais
substanciosa do que Gutenberg,
e, de certa forma, excluída do
circuito das celebrações, não
fosse o software que leva o seu
nome. Aldus (Manucius,
1450-1515) emprestou a
dimensão humanista e
intelectual de Editor ao ofício de
Impressor: a partir de 1496, criou
em sua casa uma academia, onde
se faziam colóquios diários,
traduziu os clássicos gregos e
latinos, portabilizou o livro,
reduzindo o seu formato para
caber na algibeira, arriscou
tiragens de mil exemplares e
introduziu novos tipos e fontes
tipográficas para facilitar a
leitura.
Aldus não inventou tecnologias,
fez mais -deu substância e
dimensão ao mecanicismo de
Gutenberg. Se fosse jornalista,
não estaria se fingindo de leitor,
mas preocupado com o que o
leitor precisa. Na realidade, os
seus livros podem ser
considerados como o primeiro
"medium" regular, embora
não-periódico, o que faz dele
uma espécie de
protocomunicador.
Pensando em Aldus, comemoro o
Dia da Imprensa festejado em 10
de Setembro, equívoco
emblemático de uma instituição
atarantada, espremida entre a
onipotência e a venalidade. O Dia
da Imprensa foi oficializado para
lembrar a publicação daquele
que se considera o primeiro
periódico brasileiro, "A Gazeta
do Rio de Janeiro", saído naquela
data, em 1808, oito meses depois
da esbaforida instalação da corte
de d. João VI no Rio. Acontece
que o pequeno semanário era um
órgão oficial destinado a
formalizar as relações
governo-governados, o que não
lhe retira importância, mas não
pode se constituir como marco
na difusão de idéias e
participação política. Seu
redator, frei Tibúrcio José da
Costa, foi um escriba palaciano,
nada mais.
Verdadeiro precursor do
jornalismo pátrio, lançado
quatro meses antes, foi o
"Correio Braziliense", editado por
Hipólito José da Costa, legítimo
patrono da nossa imprensa (e
objeto de estudo de outro,
Barbosa Lima Sobrinho, que
acaba de lançar "Hipólito da
Costa, Patriarca da
Independência", Fund. Assis
Chateaubriand).
Esse gaúcho ilustrado, em 1798,
foi aos EUA para conhecer
Benjamin Franklin e as inovações
políticas e científicas da nova
república; maçom, preso pela
Inquisição de Lisboa (de onde
escapou espetacularmente
graças à rede de
correligionários), reapareceu em
Londres para editar sozinho,
durante 14 anos consecutivos, o
mensário cujo cognome era,
significativamente, "Armazém
Literário".
Ignoro a lógica que leva
autoridades e corporações a
manter esta consagração do
jornalismo chapa-branca, em
detrimento do jornalismo de
idéias e debates. Qualquer que
seja a razão, a aberração está aí,
inflada pelo negócio das
festinhas, prêmios e abraços que
circundam uma efeméride
jornalística na esperança de uma
menção em letra de forma.
Este aniversário dos 189 anos de
jornalismo brasileiro coincide
com a ressaca da orgia mediática
em torno da tragédia da princesa
Diana. Sentados no banco dos
réus ou jogados no divã da
psicanálise, os animadores do
Circo da Notícia não podem
ignorar que a imprensa vive a
mais difícil crise de identidade da
sua história. Estamos assistindo a
um processo esquizofrênico de
ruptura entre premissas e
resultados com efeito
devastador (para usar o adjetivo
britânico empregado pela Rainha
Elizabeth) na própria
credibilidade do ato de informar.
Como demonstração de que,
pelo menos nestas plagas, as
mortes do casal Diana-Dodi
foram insuficientes para aplacar
a diabólica trepidação
sensacionalista, tivemos na
semana passada nova
tabloidização da vida privada da
atriz Vera Fischer, vítima
contumaz das colunas mundanas
e da chamada grande imprensa.
A partir da quinta-feira, 4 de
Setembro, quando Fischer foi
internada numa clínica carioca, e
durante os quatro dias seguintes,
começando pelos telejornais da
noite até as edições da última
segunda-feira, todos os jornalões
na primeira página, noticiários
em horário nobre e semanários
do fim-de-semana fartaram-se
em levantar as mais
desabonadoras hipóteses.
Simples suspeitas ou
desconfianças foram
apresentadas sem qualquer
suporte documental ou
testemunhal, dentro dos
pressupostos de que tudo o que
Vera Fischer faz é liminarmente
errado e sua vida pessoal deve
ser devassada como coisa
pública. "Leave me alone" teriam
sido as últimas palavras da
princesa Diana aos papparazi,
segundo o médico francês que a
atendeu. A assessora de Vera
Fischer chegou a reclamar contra
a perseguição dos nossos
mosquitos, mas a frase ficou
perdida no bojo da matéria.
Este Dia da Imprensa
duplamente equivocado faz
lembrar uma efeméride meio
esquecida: há 250 anos (1747),
por ordem de d. João 5º, era
desmantelada a oficina de
impressão de livros que instalara
o tipógrafo Antônio Isidoro da
Fonseca no Rio de Janeiro. O
episódio é conhecido dos
estudiosos, mas convém
lembrá-lo, já que só em 1808 a
América Latina entrou na era da
comunicação impressa, quando a
invenção foi introduzida no
México, em 1533, e, à época, já
funcionavam outras sete
tipografias.
A explicação para o atraso
sempre recaiu na cupidez da
Coroa, desejosa por manter a
colônia na mais ignara situação,
mas, nas andanças pela Torre do
Tombo, em Lisboa, encontrei
importantes documentos sobre o
assunto. Estavam nos arquivos
do Santo Ofício, o braço armado
da Igreja: em outubro de 1747,
depois da Ordem Régia para
desmanchar o estabelecimento
do desditado Isidoro, entrou em
ação o eficiente aparelho de
espionagem da Inquisição para
evitar que livros continuassem a
ser impressos e que, além disso,
circulassem obras jurídicas
impressas na Europa.
Remissões históricas que não
convém esquecer, sobretudo no
momento em que identifica-se o
despertar da velha vocação da
Igreja para constituir-se como
instrumento de ação política,
comprometendo a indispensável
separação entre Religião e
Estado, base dos regimes
democráticos. A quermesse
partidária de Aparecida,
domingo passado, embora não
mencionada pelo filósofo José
Arthur Giannotti na sua
conferência sobre "Moral
Pública" na USP, é ilustração
perfeita do seu raciocínio:
"Acabou a era da política dos
anjos, a idéia de um partido que
seja capaz de realizar na Terra o
reino dos céus..." (Ilustrada, 11/9,
pág. 5)
De leitura em leitura, chegamos à
entrevista do Prof. Fernando
Henrique Cardoso à "Veja", de
cuja análise encarregaram-se,
como sempre, os exegetas da
oposição diante do pudor de
dizer "sim". Fica, ao longo do
texto, reiterado o registro da
proposta para um novo
humanismo, com onze
convocações à participação da
sociedade. A mesma tônica do
discurso de sua mulher, Ruth
Cardoso, na última quarta-feira,
na ONU, como oradora de honra
na abertura da 50ª Conferência
da Organizações
Não-Governamentais, quando
afirmou que a exclusão social só
poderá ser eficazmente
eliminada através do
fortalecimento do Terceiro Setor,
uma parceria entre o público e o
privado para ocupar o espaço
social ("Gazeta Mercantil", 11/9,
pág. A-10).
À tabloidização da vida
cotidiana, o casal Cardoso
oferece como alternativa o
mutirão, o espírito de Aldus e
Hipólito, na forma de ONGs. Vale
a pena tentar. Ou, ao menos, ler a
respeito.
Alberto Dines é fundador de uma ONG on-line,
o Observatório da Imprensa
(http://www2.uol.com.br/observatorio).
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