São Paulo, quarta-feira, 13 de setembro de 2000

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MARCELO COELHO
O círculo infernal de "South Park"

O garoto deve ter uns 7 anos e está apaixonado por uma coleguinha da escola. Pergunta a um adulto o que se deve fazer para agradar uma menina. O adulto responde: "Ache o clitóris".
Na sala de aula, o professor pede aos alunos que resolvam um problema de matemática. "Quanto é cinco vezes dois?" Um menino levanta a mão e diz: "Doze". O professor cumprimenta o aluno. "Muito bem, fulano. Mas, continuando, será que podemos ouvir a resposta de alguém que não seja retardado mental?"
É esse o tipo de humor presente em "South Park", desenho animado que já há algum tempo aparece na televisão e que agora virou longa-metragem. Está em cartaz em São Paulo, proibido para menores de 14 anos. Só que, quando fui ver, havia crianças bem pequenas no cinema.
Uma pobre mãe, atrás de mim, tentava explicar as legendas para o filho, que ainda não sabia ler. A quantidade de palavrões no filme é tamanha, contudo, que ela ficava a maior parte do tempo em silêncio. Não só os palavrões, mas também imagens "pesadas" devem ter constrangido bastante a moça.
Há, por exemplo, uma cena no inferno. Belzebu nutre uma paixão por Saddam Hussein. Os dois aparecem deitados na cama de casal. A foto de um pênis ereto surge nas mãos de Saddam, que se diz excitado com as confidências do companheiro.
Decididamente, "South Park" não é para moralistas nem para crianças. De minha parte -embora o tom com que comecei o artigo pareça um pouco escandalizado-, diverti-me bastante. O ritmo narrativo, o deboche e a violência crítica desse desenho o tornam irresistível; em especial, se tivermos raiva suficiente da babaquice média norte-americana, que desde as primeiras cenas sofre todo tipo de ataque.
Um mundo de bons costumes e intenções salvadoras, de educação "saudável" e entretenimento "inocente" é virado do avesso em "South Park". Transforma-se em militarismo triunfante, em insensibilidade moral e nessa espécie de fascismo cafona, de estreiteza eufórica e opressiva, que é típica da indústria cultural americana.
A história começa quando quatro garotos da bela cidadezinha americana vão ao cinema ver um desenho animado de seus personagens prediletos, uma dupla de canadenses que falam palavrão o tempo todo. Os meninos saem do cinema com um enorme repertório de obscenidades. Pais, educadores e líderes se mobilizam para estancar a fonte da corrupção moral. Prendem a dupla do desenho e Clinton termina declarando guerra ao Canadá.
O desenho segue, ironicamente, o esquema clássico de Hollywood, com números musicais interrompendo a narrativa. Há desde uma balada de Satã, o mal-amado, até a cantoria frenética das mães contra o Canadá. Para incentivar o alistamento militar, o governo promove um megashow de graça antes da batalha.
A necessidade permanente de um inimigo externo, a vontade paranóica de encontrar um responsável alienígena pela perda da "pureza" originária da pátria, a capacidade de intensa mobilização civil em torno de questões idiotas, a transformação da sanguinolência em "show business" -o desenho critica ferozmente tudo isso.
Com toda sua força crítica, entretanto, "South Park" me deixou a impressão de ter algo de insatisfatório, de irresoluto.
Volto à situação que descrevi no começo do artigo. Atrás de mim, a mãe não sabia como contar ao filho pequeno as enormidades que apareciam na tela. Ora, esse constrangimento era exatamente o que o filme estava tematizando. No filme, crianças são expostas a um desenho ultrajante. Na vida real, acontecia o mesmo. Os heróis de "South Park" lutam contra a censura e a hipocrisia moralista. Nada contra -mas tudo se passa como se lutassem em causa própria: pois o desenho de que fazem parte vem sendo combatido e censurado também.
O ímpeto de "South Park" e suas melhores piadas talvez se devam mais à infantilidade com que se dedicam a chocar o espectador, com cenas de escatologia e palavrões, e menos ao diagnóstico -adulto e corrosivo- que fazem da mentalidade americana.
Simetricamente, aquilo que "South Park" critica -a redução de questões políticas e militares a "entertainment" e indústria- é feito pelo próprio desenho, que funciona (e muito bem) imitando, ponto por ponto, a estrutura dos musicais de Hollywood. Disse acima que esse era um procedimento irônico. Mas não sei se a ironia existe, aqui, como arma de subversão ou como mecanismo até carinhoso de auto-referência; se o conteúdo crítico usa a forma do musical -como se fosse uma bomba que se quisesse camuflar- ou se é a forma do musical que usa o conteúdo crítico, engolindo-o sem problemas.
Ou melhor, engole-o, e dá uns arrotos depois. Cedo ao mau gosto da metáfora porque "South Park" insiste, como se sabe, em coisas do tipo.



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