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CONTARDO CALLIGARIS
Dificuldade em enxergar os inimigos
Premonição: esta coluna
foi terminada segunda-feira,
10, antes do ataque terrorista contra o povo dos Estados Unidos.
Na semana passada, aconteceu,
em Durban (África do Sul), a
Conferência das Nações Unidas
contra o Racismo.
Parece-nos natural que todos os
homens desejem um mundo respeitoso das diferenças de cada
um, mesmo que nem sempre eles
consigam conter suas próprias
raivas racistas. Pois bem, enganamo-nos. A conferência lembrou
que somos (infelizmente, nesse
caso) menos globalizados do que
parecemos: o sonho de um mundo sem discriminação é apenas
uma característica de nossa cultura e da modernidade ocidental.
O encontro de Durban foi travado por dois assuntos.
Um deles foi a questão da escravatura e de como lidar com sua
herança (indenizações, políticas
compensatórias dos danos passados etc). Voltarei ao tema numa
próxima coluna.
Mas o assunto que desvirtuou a
conferência foi o conflito entre Israel e o povo palestino. Inesperadamente (porque a reunião não
tinha a ambição nem os meios de
propor mediações para o conflito), alguns representantes de países islâmicos acharam bom pedir
que a política de Israel e o sionismo em geral fossem qualificados
pela conferência como racistas.
Para entender o efeito produzido por esse pedido, imaginemos
que haja uma reunião de todos os
condôminos e inquilinos de um
prédio para chegar a declarações
comuns, graças às quais a convivência de todos se torne mais digna. Agora imaginemos que se constitua um Grupo do Terceiro
Andar (o que já é um problema, por introduzir na reunião um interesse particular) e que esse grupo peça que certos inquilinos sejam definidos como imorais ou barulhentos e, portanto, que sejam expulsos. É claro que os moradores do terceiro andar não entenderam o espírito da reunião.
Ou então (mais provável), eles
não compartilham o projeto de
constituir um condomínio de valores comuns. Só aproveitam a
reunião para liquidar o pessoal
que os incomoda.
O Grupo do Terceiro Andar é
como a Organização dos Países
Islâmicos: sua denominação já
contradiz o espírito de uma conferência contra o racismo. Em geral, os grupos reunidos por um sistema fechado de crenças promovem a discriminação dos infiéis. É aceitável tratando-se de igrejas.
Mas, tratando-se de nações ou supranações, esse funcionamento
entra em conflito com nossos valores básicos, a começar pelas liberdades individuais. Aliás, o Brasil não pertence a uma Organização dos Países Cristãos. Também a Bahia ou o Caribe, não participam de uma Organização
dos Países Umbandistas.
Em suma, há uma oposição de
fundo entre a modernidade ocidental (que é nossa sensibilidade)
e as nações que são comunidades
tradicionais organizadas ao redor de uma confissão. Trata-se de
uma fratura cultural, e seria ingênuo tratá-la como uma simples
divergência política.
Uma comunidade tradicional
não tem por que sonhar com o
convívio harmonioso de indivíduos, de nações e de culturas diferentes. Para ela, os limites do humano coincidem com seus próprios limites. Escravizar, segregar,
discriminar o infiel, o diferente ou
o cara da tribo é uma atividade
normal, se não meritória.
Nós, ao contrário, estabelecemos, entre os princípios formais
de nossa cultura, a igualdade de
todos, por diferentes que sejam,
perante leis comuns. Logo, somos
frustrados por nossa incapacidade de realizar os princípios nos
quais acreditamos. Ou seja, acontece que discriminamos uma outra etnia, fé ou opinião, mas essa atitude (norma de uma cultura
tradicional) é, para nós, uma
preocupação ou mesmo um tormento, porque constitui uma distância inaceitável entre nossos princípios e nossos restos tribais
-regurgitações de desprezo pelos
outros e de sentimentos de nossa
superioridade.
A conferência de Durban contra o racismo foi convocada para
aprimorar os princípios formais
de nossas democracias e para realizá-los concretamente.
O problema é que estamos tão
preocupados em derrotar o racismo e a intolerância em nós mesmos que mal conseguimos enxergar e admitir a existência de culturas propriamente opostas à
nossa. Reconhecê-las como tais
nos parece ser uma forma do racismo que queremos evitar.
Exemplo: muitos comentadores
levantaram a hipótese de que os
EUA e outros países ocidentais teriam aproveitado a polêmica ao
redor do sionismo para invalidar
a conferência e assim evitar dolorosas conclusões sobre as eventuais indenizações aos países africanos que foram saqueados pelo
comércio escravagista. A hipótese
inversa é bem mais verossímil: os
países islâmicos produziram essa
polêmica para esvaziar de sentido, por exemplo, a proclamação
da igualdade de direitos entre homens e mulheres ou a denúncia
da discriminação das orientações
sexuais, digamos, minoritárias.
Agitando seu dedo em riste, os
emissários do Irã evitaram discutir o destino reservado, em seu
país, aos homossexuais. Os emissários do Taleban evitaram falar
do destino das mulheres afegãs.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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