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20 ANOS DE ANISTIA
Encenada em um dos locais da repressão, peça relembra os piores anos do regime militar
Espectador "vive" tortura no Dops
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
"Tudo isso vai voltar, meu filho,
o pior é que vai voltar, vai voltar."
A atriz Lélia Abramo deu alguns
passos em direção ao deputado
José Genoino (PT-SP) e o abraçou
com força ao proferir essas palavras. Ambos choravam. Permaneceram assim por quase um minuto. A cena ocorreu na última
quinta-feira, durante a estréia da
peça "Lembrar É Resistir", sobre a
tortura praticada contra presos
políticos no regime militar.
Lélia, Genoino e cerca de 40 outras pessoas, entre as quais d. Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, e a atriz
Ruth Escobar, não estavam num
teatro qualquer. Estavam numa
das celas do antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), um dos centros da tortura
em São Paulo, comandado no auge da repressão pelo então delegado Sérgio Paranhos Fleury.
O público é convidado desde a
entrada a voltar 30 anos no tempo. O ingresso (gratuito) é uma ficha, que o espectador preenche
com seus dados pessoais e na qual
deixa a sua impressão digital. Está
"preso": "Passando dessa porta,
todos são culpados até que provem o contrário; agora ninguém
mais é inocente", diz o ator-carcereiro ao fechar a porta da rua.
Cada sessão comporta cerca de
30 pessoas. Sempre de pé, elas vão
sendo conduzidas de cela em cela,
como presos, pelo labirinto do
terror. Em cada uma delas, um
grupo de atores "revive" episódios exasperantes da prisão e da
tortura, alguns passados no próprio Dops, outros retirados de outros centros da repressão, como o
DOI-Codi, na rua Tutóia.
"Lembrar É Resistir" foi escrita
por Izaías Almada (ex-preso político) e Analy Alvarez. É dirigida
por Silnei Siqueira e encenada por
14 atores, entre os quais uma ex-presa política, Nilda Maria.
Patrocinado pelo governo do
Estado, o espetáculo integra as comemorações dos 20 anos da Lei
da Anistia, sancionada em 28 de
agosto de 1979 pelo então presidente João Baptista Figueiredo.
Catarse e comoção
Militante histórica de esquerda,
Lélia Abramo, 87, estava visivelmente abalada ao final da estréia.
Quando, no meio da peça, teve o
acesso de choro, abraçou Genoino e chegou a cambalear, uma das
atrizes perguntou se ela gostaria
de sair. "Eu fico, está tudo bem",
respondeu. No final, disse à Folha: "O momento atual é tenebroso. Não há nenhuma perspectiva
de melhoria social e, se não nos
defendermos, corremos o risco de
cair numa situação análoga à que
acabamos de ver". Lélia esteve
presa por um dia no Dops, em 69.
Também passou por lá o deputado Genoino. Preso no Araguaia
em abril de 72, Genoino chegou
ao Dops no início de 73. Já havia
sido torturado no DOI-Codi.
Nos três meses em que permaneceu no Dops, não sofreu tortura, mas ficou incomunicável numa das "solitárias", que os presos
chamavam de "fundão". Por conta disso, o deputado até hoje tem
pânico de ambientes fechados
-evita, por exemplo, andar de
elevador.
"Não foi fácil rever isso tudo. Os
policiais estão muito bem representados, e os diálogos são muito
fiéis", disse Genoino.
Impávido durante todo o espetáculo, d. Paulo, uma das lideranças mais atuantes contra a tortura, disse ao final que ficou "profundamente envolvido, como naquele tempo. A cena da morte do
Vlado talvez tenha sido a que
mais me marcou". Referia-se à
passagem da peça que narra o assassinato do jornalista Vladimir
Herzog, preso e morto no DOI-Codi em 25 de outubro de 75.
"Ainda vou escrever coisas que
não foram ditas sobre esse período", disse d. Paulo, recusando-se
a adiantar quais seriam elas.
A atriz Nilda Maria, a única do
elenco que esteve presa no Dops,
foi detida quando encenava a peça "O Balcão", com Ruth Escobar,
em 70. Fazia então o papel de uma
guerrilheira. Nilda ficou sete meses em três prisões diferentes.
"Por um lado, fazer a peça é
muito sombrio, mas é uma catarse necessária, que eu vejo às vezes
como uma predestinação", disse.
Na estréia, a historiadora Janaina Teles, 32, e sua mãe, Maria
Amélia de Almeida Teles, estavam entre os espectadores. A segunda chorava muito, lembrando
quando sua filha, então com 5
anos, foi levada ao DOI-Codi, onde ela estava, como forma de torturá-la psicologicamente.
Janaina diz lembrar-se de "gritos, escadas e da cela" em que estavam seus pais, que, segundo diz,
tinham acabado de ser torturados. "Tenho medo apenas que as
comemorações em torno da anistia fiquem restritas às vítimas diretas da tortura", disse Janaina.
Peça: Lembrar É Resistir
Onde: Dops (lgo. General Osório, 66,
centro de São Paulo)
Quando: quinta e sexta, 20h30; sábado
e domingo, 18h (até 10 de outubro)
Quanto: grátis
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