São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 2000

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"Cecil B. Demente" é um dos destaques do Festival do Rio, que realiza uma retrospectiva de filmes do cineasta
John Waters lança no Brasil seu último delírio
Cinema guerrilha

Associated Press
O diretor norte-americano John Waters, que divulga no Festival do Rio BR 2000 sua nova produção, a comédia "Cecil B. Demente"


LÚCIO RIBEIRO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Rei do lixo, príncipe do vômito, barão do mau gosto. Um título de nobreza acompanhado de um substantivo podreira. Assim são as alcunhas que John Waters, 54, vai arrastar para sempre, onde quer que carregue seus filmes.
Veterano diretor do cinema marginal dos EUA, ele deveria ganhar participação nas bilheterias de produções como "Quem Vai Ficar com Mary?", "South Park" e "Eu, Eu Mesmo e Irene".
A cada riso arrancado nos filmes acima, a vela do politicamente incorreto deveria ser acesa em Baltimore, Maryland, em homenagem a Waters, que, sem saber, batizou o termo-mor da iconoclastia em 1972, quando deu ao mundo (subterrâneo) uma obra trash chamada "Pink Flamingos" e uma travesti de 200 kg chamada Divine, cuja preocupação era não ser superada na condição de "pessoa mais nojenta do mundo".
Waters esteve no Brasil como convidado de honra do Festival do Rio BR 2000. Veio com seu mais recente filme, "Cecil B Demente" ("Cecil B Demented"), e para ser homenageado com uma mostra retrospectiva de seus "clássicos".
"Cecil B Demente" -história de um cineasta terrorista que sequestra uma estrela hollywoodiana para fazer um filme independente- tem mais cinco sessões programadas pelo festival.
O filme está comprado pela distribuidora Estação Botafogo e deve entrar em cartaz no Rio e em SP em dezembro ou no começo de 2001.
Hoje, dentro da retrospectiva do Festival do Rio, são exibidos "Mamãe É de Morte" (1994) e o histórico "Polyester" (1981), filme idealizado no sistema Odoroma. Ao público, são distribuídas "cartelas de cheiro" com dez números, equivalentes a dez cenas. Cada vez que um número surge na tela, o espectador raspa a cartela e sente o cheiro da cena.
Sobre "Cecil B Demente", não queira ouvir do diretor que seu filme é um libelo do pobre cinema independente contra o malvado "esquemão" hollywoodiano. "Jogo pedras nos dois", disse John Waters à Folha, à beira da piscina do hotel Copacabana Palace, sábado passado.
"Daqui onde estamos, até uns 50 passos para fora do hotel, eu faria um bom filme sobre "extremos". Um bom filme sobre o Brasil trash, ele quis dizer.

Folha - Como está seu reencontro com o Brasil?
John Waters -
Adoro o Brasil. Já tinha adorado quando estive aqui, 16 anos atrás, trazendo "Polyester". É um ótimo lugar para ficar acordado até bem tarde. Fui dormir às 3h da manhã. Algumas pessoas me contaram que vocês são obrigados a votar. Que incrível. O que acontece se as pessoas não votam? Vão para a cadeia? O Brasil é um lugar de extremos inacreditáveis. Adoro extremos. Daqui onde estamos, nesta piscina, até uns 50 passos para fora do hotel, você experimenta contrastes impressionantes. Daria um ótimo filme.

Folha - E como está a conservadora Baltimore? Você mora lá. Você ainda aguenta ou ela ainda aguenta você?
Waters -
Baltimore está ótima. As pessoas lá vivem como as daqui do Rio, andando sobre extremos. Não há o meio. Com uma boa dose de ironia de ambos, nos suportamos bem.

Folha - De onde vem o nome "Cecil B. Demented"? É uma brincadeira com o cineasta-produtor Cecil B. DeMille?
Waters -
Um crítico me chamou assim, quando escreveu sobre "Mamãe É de Morte". Gostei do "demented" e sabia que ia usar algum dia. A relação, dizia o crítico, era a de que DeMille fazia filmes épicos, e eu, épicos trash. As pessoas me vêem como uma espécie de terrorista do cinema. Então, já que fiz um filme sobre isso, nada como pegar um nome tão "mainstream", tão estabelecido como o de Cecil B. DeMille, para destruí-lo, arruiná-lo.

Folha - Com "Cecil B. Demente", você está fazendo graça para cima do cinema de Hollywood, dos independentes, dos dois ou de nenhum?
Waters -
Jogo pedra nos dois cinemas. Os independentes estão numa encruzilhada, querendo que seu trabalho apareça, mas aterrorizados por seus filmes baratos arrecadarem milhões nas bilheterias. Daí, são financiados com outros milhões para fazer o filme seguinte.
Não sou mais aquele que pensava assim: "Meu Deus, o que tenho que fazer agora?" Filmar meu bigode pegando fogo para provar que eu ainda acredito no cinema "puro", "verdadeiro". Daí nasceu Cecil B. Demente, um cara para quem o cinema independente é mais que uma profissão. É uma questão política, de guerra de fronteiras.
O verdadeiro terrorismo é ver um filme como "A Bruxa de Blair", que custou pouco mais de US$ 15 mil e fez US$ 150 milhões na bilheteria. Terrorismo é olhar aquele bando de executivos desesperados na caça ao próximo "A Bruxa de Blair".

Folha - Por trás do cineasta Cecil B. Demente está o cineasta John Waters?
Waters -
Há algumas semelhanças, mas muitas diferenças. Ele é um terrorista sem senso de humor. E eu, um terrorista light. Pessoas não fazem um filme como "Pink Flamingos" para construir carreira cinematográfica. Fazem para cometer um crime cultural. É como roubar banco. Nesse caso, eu sou um terrorista, mas para me divertir. Cineastas como Cecil acham que a vida real é um filme.

Folha - Por que você recorreu ao cinema francês (Canal Plus) para fazer o filme? Você chegou a oferecer o projeto de "Cecil B. Demente" a Hollywood?
Waters -
Hollywood não iria financiar um filme que fala sobre terrorismo no cinema e sobre jogar bombas em sala multiplex.

Folha - Você gosta de "South Park" ou de filmes como "Quem Vai Ficar com Mary?" Mesmo com a ironia bem mais escancarada, você vê o velho dedo de John Waters nestas produções?
Waters -
Amo "South Park". Pode até ser que tenha um pouco do meu trabalho aí, mas ninguém ainda fez um filme tão esquisito como "Pink Flamingos". Com todo o significado que a palavra "esquisito" pode ter.



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