São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

A natureza da arte

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

A maioria das pessoas em algum momento da vida encontra o que vinha procurando. Lê o que estava querendo ouvir e passa a cultuar o autor, ou o livro em questão, como uma luz no seu caminho -quando não o transforma em mito. Pode ser Marx, Freud ou Nietzsche, mas também, e cada vez mais, Deepak Chopra ou Paulo Coelho, dependendo das expectativas e da largueza de espírito de cada um.
É estranho, entretanto, que não se ouça falar mais de F.W.J. Schelling (1775-1854), um dos principais filósofos do romantismo alemão, justamente numa época em que tanto se lamenta a decadência e a crise da arte e da cultura, quando os mitos são reciclados pela via de uma pasteurização idiotizada, como mensageiros do lugar-comum.
A primeira tradução brasileira de "Filosofia da Arte", numa edição muito bem cuidada a cargo de Márcio Suzuki, reúne os cursos de estética que ele ministrou entre 1802 e 1805 e que foram publicados postumamente, em 1859. Hoje essas preleções surpreendem mais que nunca, ao iluminar um caminho esquecido, por um ponto de vista inusitado, na contracorrente.
No Brasil, o mérito da divulgação do pensamento estético de Schelling se deve em grande parte a Rubens Rodrigues Torres Filho e em especial a um texto primoroso -"O Simbólico em Schelling"- que ele publicou, em 1987, no livro "Ensaios de Filosofia Ilustrada" (Brasiliense).
O conceito de "simbólico", cujo sentido é bem diferente do que o leitor costuma associar de imediato ao termo, está na base dessa estética. A primeira dificuldade vem do fato de o filósofo acreditar que só depois de varrer o senso comum do mundo será possível criar uma verdadeira filosofia. E o primeiro passo nesse caminho é dar às palavras um sentido capaz de expandir a consciência, num processo análogo ao que busca toda a arte que se preza.
Schelling combate a interpretação alegórica da mitologia, disseminada na modernidade. Não aceita a idéia comum de que os deuses apenas representam virtudes ou são metáforas de acontecimentos da história da humanidade ou de fenômenos naturais. Ao contrário, quer ressuscitar o que é próprio do pensamento mítico: a capacidade de ver na imagem de um deus o próprio deus que ela representa, intuir o espírito do deus na sua representação.
O símbolo de que fala Schelling não é, portanto, a simples representação de uma outra coisa, uma cruz representando Cristo ou uma árvore, a vida. Sua estética está baseada no princípio da identidade e da indiferenciação do ser e do sentido, do absoluto e do particular, do infinito e do finito, da natureza e do espírito, que o filósofo vai buscar na mitologia grega.
Diferente da alegoria (em que uma coisa representa outra, em que uma imagem representa uma idéia, como no caso da cruz), o símbolo proposto por Schelling não representa nada além de si mesmo. Ele é ao mesmo tempo aquilo que ele significa, ao mesmo tempo a coisa e a sua representação, o absoluto e o particular, indiferenciados.
"Deus é a afirmação imediata de si mesmo." Assim também a arte que o filósofo procura reviver na modernidade tem uma potência análoga à da natureza. Como a mitologia, ela não pode ser uma simples metáfora, pois é auto-afirmação do ideal feito real, do espírito feito natureza.
"A mitologia nada mais é que o universo em traje superior, em sua figura absoluta, o verdadeiro universo em si, imagem da vida e do maravilhoso caos na imaginação divina, ela mesma já poesia e, no entanto, por si novamente matéria e elemento da poesia. Ela (a mitologia) é o mundo e, por assim dizer, o solo unicamente no qual podem medrar e subsistir as florações da arte."
As consequências desse pensamento hoje são no mínimo provocadoras. Afinal, no mundo da interpretação e da alegoria, onde tudo significa outra coisa e nada é o que é, seria interessante conceber a possibilidade de uma arte que, a exemplo da mitologia, não representa alguma coisa, mas é, em si mesma, a afirmação do que ela significa. Essa arte não virá de uma iniciativa individual, como alerta o filósofo, mas de uma eventual mudança de concepção e consciência do mundo. A "Filosofia da Arte" é a maior contribuição de Schelling nesse sentido.


Filosofia da Arte
Philosophie der Kunst
    
Autor: F.W.J. Schelling
Tradução e introdução: Márcio Suzuki
Editora: Edusp
Quanto: R$ 45 (418 págs.)




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