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RESENHA DA SEMANA
A natureza da arte
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
A maioria das pessoas em
algum momento da vida
encontra o que vinha procurando. Lê o que estava querendo
ouvir e passa a cultuar o autor,
ou o livro em questão, como
uma luz no seu caminho
-quando não o transforma em
mito. Pode ser Marx, Freud ou
Nietzsche, mas também, e cada
vez mais, Deepak Chopra ou
Paulo Coelho, dependendo das
expectativas e da largueza de espírito de cada um.
É estranho, entretanto, que
não se ouça falar mais de F.W.J.
Schelling (1775-1854), um dos
principais filósofos do romantismo alemão, justamente numa
época em que tanto se lamenta a
decadência e a crise da arte e da
cultura, quando os mitos são reciclados pela via de uma pasteurização idiotizada, como mensageiros do lugar-comum.
A primeira tradução brasileira
de "Filosofia da Arte", numa
edição muito bem cuidada a
cargo de Márcio Suzuki, reúne
os cursos de estética que ele ministrou entre 1802 e 1805 e que
foram publicados postumamente, em 1859. Hoje essas preleções surpreendem mais que
nunca, ao iluminar um caminho
esquecido, por um ponto de vista inusitado, na contracorrente.
No Brasil, o mérito da divulgação do pensamento estético de
Schelling se deve em grande parte a Rubens Rodrigues Torres
Filho e em especial a um texto
primoroso -"O Simbólico em
Schelling"- que ele publicou,
em 1987, no livro "Ensaios de Filosofia Ilustrada" (Brasiliense).
O conceito de "simbólico", cujo sentido é bem diferente do
que o leitor costuma associar de
imediato ao termo, está na base
dessa estética. A primeira dificuldade vem do fato de o filósofo acreditar que só depois de
varrer o senso comum do mundo será possível criar uma verdadeira filosofia. E o primeiro
passo nesse caminho é dar às
palavras um sentido capaz de
expandir a consciência, num
processo análogo ao que busca
toda a arte que se preza.
Schelling combate a interpretação alegórica da mitologia,
disseminada na modernidade.
Não aceita a idéia comum de
que os deuses apenas representam virtudes ou são metáforas
de acontecimentos da história
da humanidade ou de fenômenos naturais. Ao contrário, quer
ressuscitar o que é próprio do
pensamento mítico: a capacidade de ver na imagem de um deus
o próprio deus que ela representa, intuir o espírito do deus na
sua representação.
O símbolo de que fala Schelling não é, portanto, a simples
representação de uma outra coisa, uma cruz representando
Cristo ou uma árvore, a vida.
Sua estética está baseada no
princípio da identidade e da indiferenciação do ser e do sentido, do absoluto e do particular,
do infinito e do finito, da natureza e do espírito, que o filósofo
vai buscar na mitologia grega.
Diferente da alegoria (em que
uma coisa representa outra, em
que uma imagem representa
uma idéia, como no caso da
cruz), o símbolo proposto por
Schelling não representa nada
além de si mesmo. Ele é ao mesmo tempo aquilo que ele significa, ao mesmo tempo a coisa e a
sua representação, o absoluto e
o particular, indiferenciados.
"Deus é a afirmação imediata
de si mesmo." Assim também a
arte que o filósofo procura reviver na modernidade tem uma
potência análoga à da natureza.
Como a mitologia, ela não pode
ser uma simples metáfora, pois é
auto-afirmação do ideal feito
real, do espírito feito natureza.
"A mitologia nada mais é que
o universo em traje superior, em
sua figura absoluta, o verdadeiro universo em si, imagem da vida e do maravilhoso caos na
imaginação divina, ela mesma já
poesia e, no entanto, por si novamente matéria e elemento da
poesia. Ela (a mitologia) é o
mundo e, por assim dizer, o solo
unicamente no qual podem medrar e subsistir as florações da
arte."
As consequências desse pensamento hoje são no mínimo
provocadoras. Afinal, no mundo da interpretação e da alegoria, onde tudo significa outra
coisa e nada é o que é, seria interessante conceber a possibilidade de uma arte que, a exemplo
da mitologia, não representa alguma coisa, mas é, em si mesma,
a afirmação do que ela significa.
Essa arte não virá de uma iniciativa individual, como alerta o filósofo, mas de uma eventual
mudança de concepção e consciência do mundo. A "Filosofia
da Arte" é a maior contribuição
de Schelling nesse sentido.
Filosofia da Arte
Philosophie der Kunst
Autor: F.W.J. Schelling
Tradução e introdução: Márcio Suzuki
Editora: Edusp
Quanto: R$ 45 (418 págs.)
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