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WALTER SALLES
Al Jazeera, Antonioni e a inversão do ponto de vista
Com o deslocamento do conflito para o Afeganistão, tudo parecia anunciar que imagens
semelhantes às da Guerra do Golfo voltariam a tomar conta da televisão. Imagens frias e assépticas,
como num videogame. Rastros
luminosos de mísseis cortando a
noite. Alvos representados por pequenos retângulos que subitamente desapareceriam. Explosões
distantes, cujos efeitos mortíferos
não seriam conhecidos.
A Guerra do Golfo, vista pela
CNN e afins, deu ao público americano a ilusão de que violência e
sofrimento não estavam obrigatoriamente associados: as vítimas
do outro lado eram raramente focalizadas. É essa assimetria da
dor que caiu por terra no dia 11 de
setembro.
Agora, com as TVs ocidentais
mantidas à margem de Cabul, a
perspectiva de uma guerra "higiênica", sem que as consequências
dos bombardeios sobre a população civil afegã fossem mostradas,
parecia assegurada. Mas não.
O surgimento do canal de TV Al
Jazeera, transmitindo do outro
lado da fronteira (do que antes
estava fora de quadro), anunciou
uma outra forma de guerra. A
das imagens.
Tudo começou com os dois pronunciamentos de Bush e Bin Laden, transmitidos um após o outro. Imagens menos espetaculares
do que as dos atentados, mas possivelmente mais reveladoras das
forças culturais e ideológicas em
conflito. Os temas, paradoxalmente, são parecidos: a guerra
santa, a cruzada contra "o mal",
o ciclo de retaliações etc. Porém,
há diferenças fundamentais na
maneira com que a mensagem de
um e de outro é concebida.
Bush olha direto para a câmera.
Procura dar a impressão de que
fala para o telespectador, mas
percebe-se claramente que está
lendo um texto no teleprompter.
O desconforto com palavras que
ele não escreveu é visível. O som, a
luz, tudo é aparentemente perfeito. Perfeitamente clínico. Como
num filme hollywoodiano, sente-se o peso do aparato técnico por
trás daquilo que vemos.
Corta para Bin Laden. Por mais
que os jornais garantam que ele
possui um estúdio de TV digital
no seu refúgio, nada do que é
mostrado sugere a existência de
equipamento de alta tecnologia.
A imagem é granulada, de baixa
resolução. O microfone é aparente. O pronunciamento não é feito
diretamente para a câmera, como
se Bin Laden procurasse falar para pessoas à sua frente. Percebe-se
também que o homem que segura
o microfone é o autor do seu texto. E, como num filme iraniano,
sente-se que a equipe de captação
é pequena.
O final dos dois pronunciamentos também é extraordinariamente revelador. Bush acaba de
ler o texto. Corta-se logo. Não há
tempo a perder. Já ao término da
fala de Bin Laden, a lente abre e
contextualiza: o líder da Al Qaeda não está só, e sim sentado ao
lado de três outros dirigentes de
sua organização. Passam a beber
chá, com vagar. Uma concepção
do tempo diametralmente oposta
a que vimos antes.
A diferença da geografia, do
fundo escolhido para os dois pronunciamentos, é igualmente fascinante. A cidade que se desenha
por trás de Bush procura dar a
impressão de uma sociedade
aberta, em movimento. Mas, novamente, a sensação que se tem é
que mesmo essa imagem é falsa,
aplicada eletronicamente. Há
também toda uma mise-en-scène
por trás de Bin Laden. A metralhadora repousando à direita do
quadro, à espera. A parede escarpada de uma montanha ou de
uma gruta, bloco monolítico que
se quer inexpugnável.
Curiosamente, o confronto dessas imagens me fez lembrar de
Antonioni. Em seus filmes, a geografia física e humana sempre teve uma função essencialmente
narrativa. O magistral "Passageiro: Profissão Repórter" repousa
sobre esse princípio. Locke, o personagem de Jack Nicholson, é um
repórter da televisão britânica em
crise de identidade. Viaja para a
África, em busca de uma entrevista com um líder guerrilheiro. Tudo a sua volta -a areia do deserto, as moscas, o calor aterrador-
o desestabiliza. Locke chega finalmente a um campo de treinamento no meio do deserto. Senta-se à frente do líder guerrilheiro. O
homem negro, de pernas cruzadas, tem a aparência serena. Poderia se chamar Osama bin Laden. Já Locke não está à vontade.
Dispara uma, duas perguntas.
O líder guerrilheiro responde
que as perguntas já contêm, na
sua formulação, preconceitos típicos da sociedade que Locke representa. Pega calmamente a câmera que Locke empunha e inverte o
eixo, focalizando o repórter.
Quem faz perguntas, agora, é o líder guerrilheiro.
A justaposição dos pronunciamentos de Bush e Bin Laden
transmitiu uma sensação estranhamente semelhante, a da súbita inversão do ponto de vista.
Já a Al Jazeera acabou com a
perspectiva de uma guerra controlada, segura.
O governo americano tenta censurá-la, dizendo que a estação é
aparelho ideológico do Taleban.
Mas o que é a CNN?
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