São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

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ARTES PLÁSTICAS

Afeganistão indestrutível

Exposição com 230 peças em museu de Barcelona percorre legado histórico e apresenta mosaico étnico da região

ANTONIO JÚNIOR
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM BARCELONA

O escritor francês André Malraux descobriu, em 1930, no Afeganistão a arte greco-búdica. Fascinado por sua beleza, organizou em Paris uma exposição de budas e anjos, figuras sublimadas por um espírito religioso dominado pela piedade.
O evento inédito lançou no Ocidente uma arte misteriosa e delicada praticamente desconhecida. "O Gênio das Flores" (séc. 3-4), uma das principais peças da coleção Malraux, faz parte hoje de uma grandiosa mostra no Centro de Cultura da Fundação la Caixa, em Barcelona, que reúne 230 obras procedentes de diversos museus e coleções privadas, como o Museu do Ermitage, o Museu do Homem de Paris e o Harvard University Art Museum.
A exposição "Afeganistão, uma História Milenar", inaugurada este mês e que fica em cartaz até o dia 23 de dezembro, exibe ao público a diversidade do legado histórico e cultural afegão, suas etnias e suas culturas.
Começando na pré-história, percorre culturas pré-islâmicas e a arte islâmica, apresentando a situação atual em um bloco intitulado "Afeganistão Hoje".
Compõem ainda o núcleo elementos da vida cotidiana tradicional das diversas etnias que povoam o país, uma seleção de imagens de fotógrafos que trabalharam na região desde os anos 70 -como Eve Arnold, Raymond Depardon e James Natchtwey, da agência Magnum-, um conjunto disponível para livre consulta e uma seleção de música tradicional afegã.

Disputa pelo território
Situado nas montanhas da Ásia Central, o território do Afeganistão tem sido, ao longo da história, um local estratégico. Rota do caminho da seda, se converteu em lugar de encontro de grandes impérios e, por essa razão, em um mosaico de etnias e religiões. Essa particular riqueza também foi, e continua sendo, a origem de guerras pelo controle da região.
Sua história é marcada pela passagem de grandes conquistadores como Alexandre, o Grande e Genghis Khan.
No Afeganistão se encontravam as representações dos maiores budas do mundo, destruídos em março pelo regime taleban.
A ordem do mulá Mohamed Omar para destruir as estátuas e representações figurativas do Afeganistão, incluindo as gigantes esculturas budistas do vale de Bamiyán -junto de dezenas de ídolos de pedra e madeira em lugares históricos de Herat, Ghazni e Nangarhar-, reafirma a importância dessa exposição, na qual podem ser admirados os bronzes greco-romanos, os vasos de Alexandria, as lacas chinesas e os marfins hindus, resultado de viagens, conquistas e migrações.

Riqueza
A mostra exibe a excepcional riqueza do patrimônio da região e traz informações que ajudam a entender sua história mais recente, marcada pela queda da monarquia, pela invasão da então União Soviética e pela posterior ascensão ao poder dos talebans.
Para contextualizar melhor esses eventos, a mostra organizou visitas comentadas, ciclos de conferências e projeções de documentários (como "Viagem ao Afeganistão", de 1928, recuperado por Frédéric Gadmer) e filmes (como "O Prisioneiro das Montanhas", de 1995, de Sergei Bodrov).
Essa mestiçagem cultural encontra sua máxima expressão nos budas de traços apolíneos (como o busto do príncipe Siddharta, de 2 d.C.) e nos mosaicos de Herat, em que a iconografia islâmica se mistura com a arte dos ceramistas chineses.
Distribuída em quatro grandes blocos, a mostra releva os estilos locais e os núcleos artísticos mais ativos de cada período: "As Origens de uma Civilização", dedicado às culturas da Idade do Bronze; "O Encontro de Apolo e Buda", que contém obras procedentes da região de Ganghara e do centro monástico de Hadda; "Bamiyán no Caminho da Seda" e "Herat, Capital do Islã".
Um último bloco é dedicado ao Kafiristão, a selvagem região descrita por John Huston em "O Homem que Queria Ser Rei" (1975).
Especialmente curiosos são os desenhos em aquarela realizados por Imam Bájsh para ilustrar as memórias do general Court, um dos oficiais de Napoleão.
Ou mesmo as imagens televisivas da queda dos budas do século 6 d.C., no antigo santuário e lugar de peregrinação nas montanhas de Hindu Kush, em Bámiyán, que evocam o tombamento das torres do World Trade Center, nos EUA.
A tradição têxtil da Ásia Central também está presente com vestes realizadas com a técnica do "ikato", que permite tingir um mesmo fio com diferentes cores.
Ainda são destaques parte do tesouro de Begram, de origem grega e hindu, escondido em uma câmara secreta diante da iminência de um ataque à cidade, que foi redescoberto no século 20; e as estátuas de inspiração helenística, da cidade de Hadda, com cabeças de demônios, monges, bárbaros e animais.
Segundo o mito da criação divina do Afeganistão, quando Allah fez o mundo, viu que havia restado vários fragmentos que não encaixavam em nenhuma parte. Reunindo-os, deu origem ao Afeganistão.
"Afeganistão, uma História Milenar" tem despertado o interesse de centenas de visitantes ao dia, ávidos para conhecer uma terra de rica cultura, fulminada pela guerra civil e devastada pelos talebans. Uma produção cultural e artística de um país em que a fotografia, o cinema e a televisão são perseguidos, considerados formas de idolatrias desnecessárias e corruptas.



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