São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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MARCELO COELHO

As várias misérias da América

Na capa do livro, o mapa dos Estados Unidos adquire feições humanas: uma boca inchada ao sul, bochechas flácidas a leste e a oeste, um olho roxo no canto superior esquerdo, coincidindo com o retângulo azul cheio de estrelas brancas do mapa americano. O nome do livro é "América" (editora Conrad) e reúne diversas histórias em quadrinhos de Robert Crumb, muitas das quais publicadas na década de 1970.
Não parece muito atual a idéia dos EUA como um país decadente, sujo e caótico, quase posto a nocaute depois da Guerra do Vietnã e do rápido desenvolvimento da indústria automobilística japonesa. Publicados só agora no Brasil, os quadrinhos de Crumb parecem referir-se a um país muito diverso da mortífera, sorridente e incontestada megapotência dos dias de hoje.
Mas os personagens que aparecem nessas histórias -nerds caricatos, desempregados obesos diante da TV, pais de família tímidos e humilhados no escritório, gangues de fascistas cusparentos, satisfeitíssimos chefões da grande indústria- provavelmente são os mesmos que, dos tempos de Nixon aos de Bush, respondem pelo lado mais deprimente e destrutivo da realidade americana.
O próprio Robert Crumb -a julgar pelo documentário sobre ele e sua família, exibido há alguns anos no Brasil- reúne neuroses e frustrações suficientes para preencher o espírito de todo um batalhão de soldados americanos, daqueles encarregados de tomar conta dos prisioneiros em Abu Ghraib.
Gente pobre, feia, submersa no desemprego e na falta de instrução, intoxicada de junk food e de seriados de tiroteio na TV, vivendo em meio à poluição visual e à violência crônica de subúrbios em decadência, constitui sem dúvida o grosso do contingente daqueles recrutas que, como a famosa Lynndie England, terminam amarrando presos iraquianos numa coleira e tirando fotos da cena para sua diversão pessoal.
Nos quadrinhos de Crumb, vemos o zé-ninguém reprimido, tentando levar uma vida certinha, enquanto o pessoal da vizinhança, já entregue à marginalidade, parece desfrutar de muito mais vigor físico e desinibição sexual. Em questão de poucos quadrinhos, o homenzinho esquece sua obsessão por sexo. Arreganha os dentes, densas ondas de saliva escorrem de seus lábios, seus olhos se injetam e aos gritos, atrás do volante de seu carro de segunda mão, ele proclama a única palavra que lhe traz alívio: morte! Morte!
Tudo incha e se intumesce no traço do desenhista: os bicos arredondados dos sapatos, as mãos, os olhos, as bocas dos personagens. Linhas espaçadas, grossas e curvas nas bordas de cada objeto procuram dar uma ilusão de estereoscopia, como se carros, postes de luz e latas de lixo devessem ser rechonchudos. O efeito é o de um desenho publicitário dos anos 50, afirmativo e enfático, que tivesse engordado além da conta, explodindo em roupas apertadas demais. Os próprios quadrinhos se entopem de frases e balões: em seu grande capricho e perfeccionismo técnico, os traços de Crumb visam justamente a criar um cenário de saturação e de sujeira, que esmaga seus personagens esquemáticos.
Pobreza e saturação, vazio e superabundância coexistem nessas histórias: numa delas, sem palavras, Crumb desenha a evolução de uma cidadezinha, desde o tempo em que era apenas o cruzamento de duas estradas de terra até seu completo colapso moderno. Ocorre que o desejo de simplicidade -a velha América dos nossos avós- e a utopia ecológica, bem típica dos anos 70, misturam-se nesses quadrinhos a um impulso bem nítido de destruição.
O autor de "América" não é muito diferente de seus personagens. Com freqüência se retrata a si mesmo: seu horror aos brutamontes militaristas de direita só não é maior do que sua desconfiança diante de intelectuais de esquerda. Seu ódio, ele mesmo diz, se estende a quase tudo: roqueiros, jovens, velhos, irlandeses, italianos, judeus... as histórias de Crumb vão num crescendo em que o desfecho, de modo bem americano, só pode ser a destruição regeneradora. Ou o sexo regenerador e também violento, em geral representado por mulheres enormes, aventureiras, assustadoras, saudáveis como suínas.
Há um grupo social, nesses quadrinhos já antigos, que estaria também representando uma perspectiva de liberação e novidade para o sufocante mundo da classe média americana: os negros. Mas Crumb não esconde o medo, a estranheza que sente diante deles; representa-os com traços estereotipados mas também com simpatia.
Mesmo aos olhos de um observador distante, é claro que muita coisa mudou da "América" de Crumb aos dias atuais. Uma sociedade multirracial, aberta a todo tipo de minorias sexuais, colhendo os frutos da revolução da informática e da biotecnologia, faz e acontece numa economia globalizada, sem encontrar rivais à sua altura no plano militar e cultural.
Tudo indica, entretanto, que o progresso experimentado pelos EUA a partir da década de 70 não eliminou, mas apenas se sobrepôs aos vários redutos de frustração pessoal e de miséria de uma "América profunda" que os quadrinhos de Crumb retratam como ninguém.
O mundo de Crumb ainda é o de Michael Moore. Basta ver as cenas dolorosas de "Fahrenheit 11 de Setembro", em que Moore nos explica por que tantos jovens acabam se alistando no Exército e terminam sendo mortos no Iraque; basta lembrar o tipo de adolescentes que aparecia em "Tiros em Columbine" para que as histórias de Crumb nos pareçam ainda atuais. Tudo talvez seja mais rápido e luminoso, aerodinâmico e fosforescente, como os mísseis, os tênis, os aparelhos de som e as telas de computador: mas uma população gorda, vulgar e triste, de aparelhos nos dentes, óculos de fundo de garrafa e espinhas no rosto sonha e se frustra, sente vergonha e ódio por todos os cantos daquele país. Que nisso, pelo menos, não é diferente de todos os outros.


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