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MARCELO COELHO
As várias misérias da América
Na capa do livro, o mapa
dos Estados Unidos adquire
feições humanas: uma boca inchada ao sul, bochechas flácidas a
leste e a oeste, um olho roxo no
canto superior esquerdo, coincidindo com o retângulo azul cheio
de estrelas brancas do mapa americano. O nome do livro é "América" (editora Conrad) e reúne diversas histórias em quadrinhos de
Robert Crumb, muitas das quais
publicadas na década de 1970.
Não parece muito atual a idéia
dos EUA como um país decadente, sujo e caótico, quase posto a
nocaute depois da Guerra do
Vietnã e do rápido desenvolvimento da indústria automobilística japonesa. Publicados só agora no Brasil, os quadrinhos de
Crumb parecem referir-se a um
país muito diverso da mortífera,
sorridente e incontestada megapotência dos dias de hoje.
Mas os personagens que aparecem nessas histórias -nerds caricatos, desempregados obesos
diante da TV, pais de família tímidos e humilhados no escritório,
gangues de fascistas cusparentos,
satisfeitíssimos chefões da grande
indústria- provavelmente são os
mesmos que, dos tempos de Nixon aos de Bush, respondem pelo
lado mais deprimente e destrutivo da realidade americana.
O próprio Robert Crumb -a
julgar pelo documentário sobre
ele e sua família, exibido há alguns anos no Brasil- reúne neuroses e frustrações suficientes para preencher o espírito de todo
um batalhão de soldados americanos, daqueles encarregados de
tomar conta dos prisioneiros em
Abu Ghraib.
Gente pobre, feia, submersa no
desemprego e na falta de instrução, intoxicada de junk food e de
seriados de tiroteio na TV, vivendo em meio à poluição visual e à
violência crônica de subúrbios em
decadência, constitui sem dúvida
o grosso do contingente daqueles
recrutas que, como a famosa
Lynndie England, terminam
amarrando presos iraquianos numa coleira e tirando fotos da cena
para sua diversão pessoal.
Nos quadrinhos de Crumb, vemos o zé-ninguém reprimido,
tentando levar uma vida certinha, enquanto o pessoal da vizinhança, já entregue à marginalidade, parece desfrutar de muito
mais vigor físico e desinibição sexual. Em questão de poucos quadrinhos, o homenzinho esquece
sua obsessão por sexo. Arreganha
os dentes, densas ondas de saliva
escorrem de seus lábios, seus olhos
se injetam e aos gritos, atrás do
volante de seu carro de segunda
mão, ele proclama a única palavra que lhe traz alívio: morte!
Morte!
Tudo incha e se intumesce no
traço do desenhista: os bicos arredondados dos sapatos, as mãos,
os olhos, as bocas dos personagens. Linhas espaçadas, grossas e
curvas nas bordas de cada objeto
procuram dar uma ilusão de estereoscopia, como se carros, postes
de luz e latas de lixo devessem ser
rechonchudos. O efeito é o de um
desenho publicitário dos anos 50,
afirmativo e enfático, que tivesse
engordado além da conta, explodindo em roupas apertadas demais. Os próprios quadrinhos se
entopem de frases e balões: em seu
grande capricho e perfeccionismo
técnico, os traços de Crumb visam
justamente a criar um cenário de
saturação e de sujeira, que esmaga seus personagens esquemáticos.
Pobreza e saturação, vazio e superabundância coexistem nessas
histórias: numa delas, sem palavras, Crumb desenha a evolução
de uma cidadezinha, desde o tempo em que era apenas o cruzamento de duas estradas de terra
até seu completo colapso moderno. Ocorre que o desejo de simplicidade -a velha América dos
nossos avós- e a utopia ecológica, bem típica dos anos 70, misturam-se nesses quadrinhos a um
impulso bem nítido de destruição.
O autor de "América" não é
muito diferente de seus personagens. Com freqüência se retrata a
si mesmo: seu horror aos brutamontes militaristas de direita só
não é maior do que sua desconfiança diante de intelectuais de
esquerda. Seu ódio, ele mesmo
diz, se estende a quase tudo: roqueiros, jovens, velhos, irlandeses,
italianos, judeus... as histórias de
Crumb vão num crescendo em
que o desfecho, de modo bem
americano, só pode ser a destruição regeneradora. Ou o sexo regenerador e também violento, em
geral representado por mulheres
enormes, aventureiras, assustadoras, saudáveis como suínas.
Há um grupo social, nesses quadrinhos já antigos, que estaria
também representando uma
perspectiva de liberação e novidade para o sufocante mundo da
classe média americana: os negros. Mas Crumb não esconde o
medo, a estranheza que sente
diante deles; representa-os com
traços estereotipados mas também com simpatia.
Mesmo aos olhos de um observador distante, é claro que muita
coisa mudou da "América" de
Crumb aos dias atuais. Uma sociedade multirracial, aberta a todo tipo de minorias sexuais, colhendo os frutos da revolução da
informática e da biotecnologia,
faz e acontece numa economia
globalizada, sem encontrar rivais
à sua altura no plano militar e
cultural.
Tudo indica, entretanto, que o
progresso experimentado pelos
EUA a partir da década de 70 não
eliminou, mas apenas se sobrepôs
aos vários redutos de frustração
pessoal e de miséria de uma
"América profunda" que os quadrinhos de Crumb retratam como
ninguém.
O mundo de Crumb ainda é o
de Michael Moore. Basta ver as
cenas dolorosas de "Fahrenheit 11
de Setembro", em que Moore nos
explica por que tantos jovens acabam se alistando no Exército e
terminam sendo mortos no Iraque; basta lembrar o tipo de adolescentes que aparecia em "Tiros
em Columbine" para que as histórias de Crumb nos pareçam
ainda atuais. Tudo talvez seja
mais rápido e luminoso, aerodinâmico e fosforescente, como os
mísseis, os tênis, os aparelhos de
som e as telas de computador:
mas uma população gorda, vulgar e triste, de aparelhos nos dentes, óculos de fundo de garrafa e
espinhas no rosto sonha e se frustra, sente vergonha e ódio por todos os cantos daquele país. Que
nisso, pelo menos, não é diferente
de todos os outros.
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