São Paulo, terça-feira, 13 de novembro de 2001

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CINEMA

Memória da infância na guerra

MV Bill prepara documentário sobre crianças que são "soldados" do tráfico

Roberto Price/Folha Imagem
O rapper MV Bill, que promete abordagem inédita em 'Di Menor'


SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

"Esperava que até Bin Laden ganhasse prêmio, menos eu."
Alex Ferreira Barbosa, 27, o cidadão por trás do codinome MV (Mensageiro da Verdade) Bill, tem mais de uma razão para se surpreender com os R$ 100 mil que a Brasil Telecom destinou ao seu projeto de documentário "Di Menor", escolhido, na quinta passada, entre dez concorrentes.
Na primeira vez em que o rapper "nascido e criado no morro" manejou uma câmera, a Justiça entendeu que suas imagens traduziam uma idéia de complacência com o tráfico.
"Absolvido" da suspeita de apologia ao crime, o clipe "Soldado do Morro", gravado na Cidade de Deus (RJ), onde vive MV Bill, e lançado ano passado, pôde continuar sendo exibido, mas conservou o estigma de polêmico.
E é precisamente um desdobramento do clipe do que trata "Di Menor". Bill e seu produtor Celso Athayde pretendem registrar o cotidiano de crianças usadas como "soldados" no tráfico em quatro cidades brasileiras -Rio, São Paulo, Brasília e Fortaleza.
O recorte deve-se a uma revisão da geometria segundo a qual MV Bill enxerga o tráfico. Antes de excursionar com "Soldado do Morro" pelo país, o rapper acreditava que as crianças eram o vértice "menos punido" do esquema.
O contato com a realidade das "comunidades" nas demais capitais brasileiras -que descobriu semelhante à da Cidade de Deus- demonstrou, segundo ele, que são os menores os que mais sofrem. "Admito meu erro. Você vê um moleque com orgulho de empunhar um fuzil 762, que é maior do que ele. Mas, no fundo, o cara não está feliz nada."
Os diretores defendem o ineditismo do projeto por acreditar que os pequenos combatentes na guerra das drogas (e suas mães) falarão com uma franqueza jamais oferecida aos microfones de repórteres ou à câmera de um cineasta. E o farão pela confiança de estarem em pé de igualdade:
"Você pode ter uma boa idéia, mas não adianta a produtora chamar um diretor renomado para dar a visão da sua idéia. A maioria dos documentários que tenta entrar na questão do crime fracassa por isso. Por mais que o cara tenha conhecimento da causa, é diferente. É como ver racismo no olhar. Só quem é preto consegue enxergar esse racismo. Quem não é não consegue, acha que é neurose, paranóia. Tem coisas que a gente é que tem que fazer. Essa é uma delas, apesar de a minha única experiência com câmera ter sido no meu clipe", argumenta Bill.
Se a intimidade dos diretores com o tema de "Di Menor" promete ser o maior predicado na produção do filme, é dela também que se espera reações de desconfiança. "A dúvida que fica na cabeça dos policiais, dos promotores, da Justiça é essa: como é que os caras deixam ele entrar na "boca", pegar em fuzil? Acham que só pode ser conivência. Mas não é. O que temos é credibilidade. Isso não é ser puxa-saco nem conivente. É ter o discurso que faz o cara se sentir protegido."
"Meu discurso não é proteger bandido, mas não vou acusar o cara que está na favela, porque ele não é o dono do tráfico. É só mais um soldado. O grande general está no asfalto. Às vezes, tem um cargo político; às vezes, é dono de empresa. Nunca é molestado. Não é novidade para ninguém: a violência está na favela, mas quem a administra está no asfalto."
"Di Menor" está orçado em US$ 180 mil. Outros US$ 40 mil estão previstos para exibições em comunidades faveladas. Há uma possibilidade (em negociação) de co-produção com a Alemanha.
O incentivo da Brasil Telecom foi oferecido no encerramento do Laboratório de Projetos de Documentários Brasil Documenta, realizado pelo canal GNT, semana passada, no Rio, com patrocínio da empresa de telefonia.
A escolha pelo patrocínio de "Di Menor" entre os projetos participantes (que incluíam trabalhos de Marcelo Masagão, Davi França Mendes, Cao Guimarães e Mônica Simões, entre outros) foi feita pela gerente de comunicação social Natalice Mundim.
O anúncio foi aplaudido com entusiasmo pela platéia, retribuído com um rap inédito de MV Bill (leia trecho ao lado) e classificado de corajoso pelos presentes.
"Corajoso nessa decisão é apostar num cineasta sem experiência. Quanto ao tema, é parte da nossa realidade e tem grande relevância social", diz Mundim.

A jornalista Silvana Arantes viajou a convite do Brasil Documenta


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