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São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2003

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ARTIGO

Gerald Thomas, eterno "enfant terrible" do teatro brasileiro

LARRY ROHTER
DO "NEW YORK TIMES", NO RIO DE JANEIRO

O público da noite de estréia, no Teatro Municipal do Rio, da versão de "Tristão e Isolda", de Wagner, retrabalhada radicalmente pelo diretor Gerald Thomas, odiou a peça e quis que o diretor soubesse disso.
Embora o elenco tenha sido poupado quando saiu para receber seus aplausos, assim que Thomas apareceu no palco ele foi saudado com uma saraivada de vaias e insultos.
E Thomas respondeu de uma maneira com a qual sem dúvida já devem ter sonhado muitos artistas que se sentiram incompreendidos ou não apreciados. Sob o olhar horrorizado da atriz principal, ele deu as costas para a platéia, abaixou as calças e as cuecas verdes e mostrou as nádegas para o público.
Agora Thomas, o eterno "enfant terrible" do teatro brasileiro, está pagando o preço por seu gesto. Com base numa queixa registrada pelo chefe de polícia local, foi acusado de prática de ato obsceno e convocado a comparecer anteontem na Justiça carioca. [A segunda audiência, que aconteceria na última terça, foi adiada para o dia 17 de fevereiro. O motivo do adiamento foi a ausência da secretária de Cultura do Estado, Helena Severo, testemunha considerada fundamental pelo Ministério Público; Thomas foi indiciado no artigo 233 do Código Penal, que prevê pena de três meses a um ano de detenção ou pagamento de multa.]
O indiciamento causou espanto entre artistas e defensores das liberdades civis cariocas. Esta é, afinal, uma cidade notoriamente permissiva e, até mesmo, licenciosa, onde milhares de pessoas desfilam virtualmente nuas pelas ruas e na televisão durante as comemorações anuais do Carnaval, com a plena aprovação das mesmas autoridades que agora estão castigando Gerald Thomas.
O fato é que, desde que se transferiu para cá, há quase 20 anos, trazendo consigo a paixão pela vanguarda, Thomas vem atraindo críticas e atenção constantes.
Nascido no Rio, filho de um comunista alemão refugiado de Hitler e de uma psicanalista galesa de origem judaica e lituana, Thomas, 49 anos, passou o início de sua vida adulta em Londres e em seguida se mudou para Nova York, onde dirigiu 18 peças de Samuel Beckett no La MaMa entre 79 e 84, antes de voltar para casa. Em entrevista por telefone concedida de Londres, onde se refugiou temporariamente, Thomas reconheceu que sua versão de "Tristão e Isolda" é intencionalmente revisionista e provocante.
Durante a abertura, uma mulher se masturba, sentada num sofá. Outra cena muito ridicularizada pela crítica mostra Sigmund Freud cheirando cocaína e atirando-a no ar como confete. A produção também inclui um coro de judeus hassídicos e um desfile de moda.
"Não sou um diretor realista", disse Gerald Thomas. "Adoro misturar coisas e fazer todas essas coisas metalinguísticas que faço. Mas acho que criei uma ópera bastante formal, com um conceito bem pensado. A moda realmente acaba com a paixão, especialmente numa peça como "Tristão e Isolda"."
O diretor acrescentou que está acostumado a ser vaiado e que, sob certas circunstâncias, como a produção polêmica de "O Holandês Voador", de Wagner, que encenou no Teatro Municipal em 1987, ele chega a preferir vaias a aplausos. O que o enfureceu no caso em pauta, disse ele, foram as observações anti-semitas que afirma ter ouvido de pessoas na platéia.
"Das três primeiras fileiras, ouvi claramente vozes dizendo: "Seu judeuzinho sujo, por que você não volta para os campos?'", disse. "Isso foi organizado por membros do Fórum Internacional Richard Wagner, que vieram da Alemanha e de Buenos Aires porque não gostaram de meu espetáculo. Perdi a cabeça, e o resto já virou história."
Outras pessoas ligadas à produção ou que estavam na platéia naquela noite disseram não ter ouvido nenhum comentário pejorativo desse tipo. Mendel Mendlewicz, judeu nascido na Polônia, é presidente da sucursal do Rio da Sociedade Richard Wagner e, embora diga que tenha se negado a assistir à versão que Thomas montou de "Tristão e Isolda" por questão de princípio, "porque eu sabia que um louco como ele faria sua peça própria, usando a música de Wagner como pano de fundo", desmentiu a acusação de anti-semitismo feita por Thomas. "Não acredito que tenha acontecido", disse Mendlewicz. "Na realidade, aposto que não aconteceu. Chequei pessoalmente com amigos que estiveram lá, e nenhuma entre as mais de 20 pessoas que consultei ouviu qualquer coisa do tipo."
Mesmo no mundo da cultura brasileira, Gerald Thomas já acumulou muitos inimigos, numa longa série de disputas e confrontos. Mas um grupo de respeitados atores, músicos, escritores, diretores e críticos saiu em sua defesa com uma petição solicitando que a promotoria retire as queixas contra o diretor. Eles dizem que Gerald Thomas é culpado, no máximo, de "uma atitude impensada que é digna de crítica, mas não de castigo".


Tradução Clara Allain


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