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ANÁLISE
O que ela diria desse mundo?
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
Não são poucas as vezes que
tenho me perguntado, diante
de tudo que tem acontecido
nos últimos anos, como Ana
Cristina César reagiria, o que
ela pensaria, o que ela diria.
Quando Ana se foi, em 1983, o
Brasil ainda não elegia presidente, a Aids era um boato, o
videocassete começava a conquistar os lares da classe média,
o microcomputador não era
um utensílio doméstico, não
havia Internet, a União Soviética permanecia inteira, a palavra globalização não circulava,
ninguém imaginava que Fernando Henrique Cardoso fosse
chegar um dia à Presidência,
que Francisco Weffort seria
ministro e que Arnaldo Jabor
faria comentários no "Jornal
Nacional".
A primeira vez que vi Ana
Cristina César foi numa reunião de um grupo de jornalistas, artistas e intelectuais -em
torno da liderança anárquica e
divertida de Júlio César Montenegro- para lançar um jornal
alternativo que viria a se chamar "O Beijo".
O grupo, grande e bastante
heterogêneo, tinha em comum
o sentimento de inadaptação à
cultura hegemônica de oposição ao regime militar, ainda
bastante influenciada pelo
ideário do Partido Comunista,
nacionalista, conteudista e populista. Queríamos discutir sexo, feminismo, falar de Foucault, poder criticar abertamente a União Soviética, a herança cultural do CPC, a estreiteza da militância e a própria
imprensa.
Lembro dela no canto, bonita, de jeans, olhos azuis e míopes atrás dos óculos. Nessa
época, Ana implicava terrivelmente com a literatura "sabor
povo" que andava em voga.
Detestava também a poesia e a
canção engajadas, que colocavam a política ou o "social" à
frente da linguagem. Sentia-se
minoritária em seu refinamento letrado, em seu universo europeu, em sua delicadeza poética.
Não gostava inteiramente,
também, do que se convencionou chamar de poesia marginal
-categoria com a qual ela já
foi identificada. Embora tivesse
amigos e gostasse de alguns
poemas, mantinha a distância
que sua sofisticação impunha.
Ana gostava mesmo de Mallarmé, de Baudelaire, de Walt
Whitman, de Emily Dickson,
de "Judas, o Obscuro" (livro
que a deixou eufórica e com o
qual me presenteou com a dedicatória: "Para ler e enlouquecer"), de Roland Barthes,
de Lawrence Ferlinghetti, de
Jorge de Lima, de Godard e de
Janete Clair.
Ela amava o "O Astro", com
Francisco Cuoco. Lembro que
fazia anotações (era do tipo que
vivia com caderninhos, registrava às vezes compulsivamente o cotidiano, como se ele só se
realizasse em texto) e tinha planos de escrever sobre a novela e
sua autora.
Gostava, também, de Caetano Veloso, referência da geração anterior, ao lado de Torquato Neto, cujo suicídio pairou sobre nossa geração.
Quando saiu o disco "Muito",
ela apaixonou-se pela letra da
canção-título (adorava o "juro
que eu não presto" e o "falo de
quantidade e intensidade") e
por "Terra" -que dizia ser o
melhor poema do ano. Quando
voltou da Inglaterra, falava
muito de um grupo "novo",
chamado Police.
Ana gostava ainda de Chico e
Clara Alvim, de Heloisa Buarque de Holanda, de Ana Carolina, de Armando Freitas Filho e
de tantos outros amigos que,
como eu, devem se perguntar o
que ela diria desse mundo que
não mais conhece -embora,
felizmente, dele continue fazendo parte.
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