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São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 2003

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LIVRO / LANÇAMENTO

"MARIA"

Contos são fruto da passagem do autor pelo Exército Vermelho, quando lutou ao lado de cossacos contra poloneses

Isaac Bábel faz sentir como pela primeira vez

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Isaac Bábel (1894-1941) ficou conhecido sobretudo pela coletânea "Cavalaria Vermelha" (1926), da qual fazem parte três dos contos incluídos neste "Maria - Uma Peça e Cinco Histórias". São fruto da passagem do autor pelo Exército Vermelho, lutando ao lado de cossacos, contra os poloneses, entre 1920 e 1921. À exceção de um deles, traduzido do inglês por Rubem Fonseca, todos os outros textos reunidos nesta edição foram vertidos diretamente do russo para o português.
Em "História do Meu Pombal", com tradução de Bóris Schnaiderman, o autor, que vinha de uma família de judeus de Odessa, narra a ferocidade do anti-semitismo ucraniano, pelos olhos de uma criança. "Ninguém no mundo sente os objetos novos mais intensamente do que as crianças." A frase, que poderia ter um tom singelo numa prosa memorialista tradicional, adquire uma ironia espantosa num texto sobre a vida de um menino a quem não basta vencer o preconceito e a perseguição dos professores na escola e passar no exame de admissão, mas que ainda precisa escapar com a família dos pogroms (pilhagens e assassinatos de judeus, perpetrados com a aprovação das autoridades).
O princípio das narrativas de Bábel está nessa frase ao mesmo tempo singela e terrível: fazer o leitor sentir o que lê como uma criança sente os objetos novos. É o mesmo princípio dos seus relatos de guerra, que podem falar da incapacidade do narrador de dar o tiro de misericórdia em um de seus colegas mortalmente ferido ou da violência ensandecida de pais e filhos que se matam numa guerra civil, a serviço de exércitos inimigos. O memorialismo de Bábel, seja ao lembrar a infância, seja ao relatar a juventude no front, busca alcançar o mesmo que toda literatura que se preza: fazer ver e sentir como se fosse pela primeira vez.
"Maria", traduzida por Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade, é uma peça pré-beckettiana. E não só por uma razão cronológica. Podia muito bem ter sido chamada "Esperando Maria". Como na primeira narrativa da coletânea ("Mamãe, Rimma e Alla"), aqui também se trata da derrocada de uma família, só que durante a Revolução, obrigada a dispor de tudo o que tem (das jóias e móveis à própria filha) para sobreviver.
Os sobreviventes, no caso, são um general aposentado, que faz vista grossa sobre os atos da filha; a filha que antes frequentava a corte e agora tenta seduzir um judeu oportunista; três estropiados de guerra e um ex-príncipe que toca violino para proletários.
O general vive com a filha mais nova, Liudmila, num apartamento em Petersburgo, enquanto a mais velha e favorita, Maria, serve na frente de batalha, depois de ter se alistado no Exército Vermelho. Os que ficaram levam uma existência passiva e desesperada, catando as migalhas que lhes restam: "Não o mataram, sorte sua, continue vivendo".
Seguindo esse preceito, Liudmila decide se aproveitar do que tem à disposição. Vende as jóias da família e se faz de difícil para conseguir o que quer dando o mínimo em troca. Acha que é mais oportunista do que os oportunistas. Acaba quebrando a cara e arrastando consigo o que restava da família. Todos são corrompidos, expostos à própria humanidade. Os sobreviventes devoram uns aos outros.
Só Maria, por estar ausente, encarna o ideal da salvação. O general espera a sua chegada. Paira ao longo de toda a peça a expectativa da sua volta. Em vão. Maria é uma espécie de Godot.
Publicada em 1935, a peça nunca foi encenada. O autor consagrado de "Cavalaria Vermelha" foi silenciado e perseguido pelo stalinismo. Preso em 1939, Bábel morreu dois anos depois num campo de prisioneiros na Sibéria. Vítima de uma violência absurda, que lhe escapa, como o personagem de uma história que ele poderia ter escrito.


Maria
    
Autor: Isaac Bábel
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 29 (144 págs.)



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