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Crítica/"Emily Dickinson: Não Sou Ninguém - Poemas"
Tradução recria força de Dickinson
Excelente trabalho de Augusto de Campos traz 40 poemas que revelam os temas e as inquietações da norte-americana
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Enganam-se os leitores
que acreditam na liberdade como um movimento exterior. Casos existem
em que a liberdade, a verdadeira liberdade, procede de um recuo interior: o momento em
que nos retiramos socialmente
do mundo para encontrar nesse mundo seus significado e
mistério essenciais.
Emily Dickinson (1830-1886) conseguiu-o, e talvez por
isso ela sobreviva entre nós de
uma forma mais intensamente
presente do que outros autores
oitocentistas, como Alfred
Tennyson (1809-1892) ou Robert Browning (1812-1889).
E, ao contrário deles, Dickinson sobrevive de maneira heterodoxa: a sua poesia não é um
exemplo de métrica, de rigor
rítmico, de gramática, de sintaxe. Mas, como a própria disse
ao crítico Thomas Higginson,
da "Atlantic Monthly", a poesia
só merece o nome quando é capaz de gelar o corpo que a lê.
Como Dickinson escreve:
Uma palavra se abre
Como um sabre -
Pode ferir homens armados
Com sílabas de farpa
Depois se cala -
Mas onde ela caiu
Quem se salvou dirá
No dia de desfile
Que algum Irmão de armas
Parou de respirar.
É essa tarefa hercúlea, porque simultaneamente técnica e
expressiva, que Augusto de
Campos nos propõe em "Emily
Dickinson: Não Sou Ninguém
-0Poemas", uma breve coletânea de Dickinson que o poeta
brasileiro traduziu brilhantemente. Não apenas pela capacidade de respeitar e (re)criar a
heterodoxia técnica da poesia
de Dickinson, que não cumpre
as regras "formais" das academias. Mas também porque Augusto de Campos conseguiu
mergulhar nos seus 1.789 poemas (estimativa oficial) e nos
dar uma panorâmica dos te-mas e das inquietações que
sacudiram a vida desta enigmática mulher.
Força de criança
A poesia de Dickinson atinge-nos com a força de uma
criança. Não se pretende dizer
com isso que a poesia seja infantil, no sentido prosaico do
termo. Apenas que Dickinson
mergulha na experiência individual, experiência que é sempre o resultado do confronto do
"eu" com o mundo, transportando consigo a abertura, a capacidade de deslumbramento e
a busca da essencialidade que é
própria das crianças. A vida é
celebrada no seu êxtase, mas
também na sua banalidade. E a
nossa existência, transitória e
perecível, é vislumbrada em
tom irônico e anticelebratório:
Não sou Ninguém! Quem é
você?
Ninguém - Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste - ser - Alguém!
Que pública - a Fama -
Dizer seu nome - como a Rã -
Para as almas da Lama!
É com a consciência dessa
transitoriedade que Dickinson
celebra o trivial, o natural, por
vezes o doméstico e o microscópico, concedendo-lhes um
estatuto singular. Ao contrário
dos poetas românticos, que
viam na natureza um espetáculo sublime que permitiria um
acesso aos mistérios do divino,
Dickinson recusa esse transcendentalismo (conseqüência
da sua recusa biográfica em receber e viver o revivalismo religioso experimentado na sua
rural Amherst). A intensão de
Dickinson é, antes, a de conferir às coisas tangíveis e visíveis
deste mundo um estatuto venerando:
Sépala, pétala e um espinho -
Nesta manhã radiosa -
Gota de orvalho - Abelhas -
Brisa -
Folhas em remoinho -
Sou uma rosa!
Finalmente, Augusto de
Campos incluiu também o
grande "enigma" (o "riddle",
como lhe chama recorrentemente Dickinson) da vida e da
poesia da autora: falo, obviamente, da morte. E a morte não
é interpretada por Dickinson
como estado transitório que
permite um acesso à imortalidade da alma. A morte, em Dickinson, define-se antes pelo
mistério, pela incerteza e por
seu tumular silêncio.
O poema "Senti um Féretro
em Meu Cérebro", um dos
grandes poemas de Dickinson
que Augusto de Campos traduziu e incluiu na presente coletânea, é, neste sentido, exemplar: dificilmente encontramos
na poesia de língua inglesa
uma tão aterrorizante descrição da morte, interrrompida
no verso final pela incapacidade da autora para lhe conferir
um significado reconciliador.
A razão humana é incapaz de
explicar a verdade final da nossa condição.
Eis a profunda riqueza do legado poético de Dickinson: se
os vitorianos procuravam explicar e limitar o mundo com a
onisciência arrogante do espírito científico e industrial do
século 19, Dickinson relembra-nos de que o mistério da existência humana estará para
além de qualquer teoria.
EMILY DICKINSON: NÃO SOU
NINGUÉM - POEMAS
Autora: Emily Dickinson
Tradução e organização: Augusto de
Campos
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 25 (112 págs.)
Avaliação: ótimo
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