São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 2008

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Crítica/"Emily Dickinson: Não Sou Ninguém - Poemas"

Tradução recria força de Dickinson

Excelente trabalho de Augusto de Campos traz 40 poemas que revelam os temas e as inquietações da norte-americana

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Enganam-se os leitores que acreditam na liberdade como um movimento exterior. Casos existem em que a liberdade, a verdadeira liberdade, procede de um recuo interior: o momento em que nos retiramos socialmente do mundo para encontrar nesse mundo seus significado e mistério essenciais.
Emily Dickinson (1830-1886) conseguiu-o, e talvez por isso ela sobreviva entre nós de uma forma mais intensamente presente do que outros autores oitocentistas, como Alfred Tennyson (1809-1892) ou Robert Browning (1812-1889).
E, ao contrário deles, Dickinson sobrevive de maneira heterodoxa: a sua poesia não é um exemplo de métrica, de rigor rítmico, de gramática, de sintaxe. Mas, como a própria disse ao crítico Thomas Higginson, da "Atlantic Monthly", a poesia só merece o nome quando é capaz de gelar o corpo que a lê. Como Dickinson escreve:

Uma palavra se abre
Como um sabre -
Pode ferir homens armados
Com sílabas de farpa
Depois se cala -
Mas onde ela caiu
Quem se salvou dirá
No dia de desfile
Que algum Irmão de armas
Parou de respirar.


É essa tarefa hercúlea, porque simultaneamente técnica e expressiva, que Augusto de Campos nos propõe em "Emily Dickinson: Não Sou Ninguém -0Poemas", uma breve coletânea de Dickinson que o poeta brasileiro traduziu brilhantemente. Não apenas pela capacidade de respeitar e (re)criar a heterodoxia técnica da poesia de Dickinson, que não cumpre as regras "formais" das academias. Mas também porque Augusto de Campos conseguiu mergulhar nos seus 1.789 poemas (estimativa oficial) e nos dar uma panorâmica dos te-mas e das inquietações que sacudiram a vida desta enigmática mulher.

Força de criança
A poesia de Dickinson atinge-nos com a força de uma criança. Não se pretende dizer com isso que a poesia seja infantil, no sentido prosaico do termo. Apenas que Dickinson mergulha na experiência individual, experiência que é sempre o resultado do confronto do "eu" com o mundo, transportando consigo a abertura, a capacidade de deslumbramento e a busca da essencialidade que é própria das crianças. A vida é celebrada no seu êxtase, mas também na sua banalidade. E a nossa existência, transitória e perecível, é vislumbrada em tom irônico e anticelebratório:

Não sou Ninguém! Quem é
você?
Ninguém - Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste - ser - Alguém!
Que pública - a Fama -
Dizer seu nome - como a Rã -
Para as almas da Lama!


É com a consciência dessa transitoriedade que Dickinson celebra o trivial, o natural, por vezes o doméstico e o microscópico, concedendo-lhes um estatuto singular. Ao contrário dos poetas românticos, que viam na natureza um espetáculo sublime que permitiria um acesso aos mistérios do divino, Dickinson recusa esse transcendentalismo (conseqüência da sua recusa biográfica em receber e viver o revivalismo religioso experimentado na sua rural Amherst). A intensão de Dickinson é, antes, a de conferir às coisas tangíveis e visíveis deste mundo um estatuto venerando:

Sépala, pétala e um espinho -
Nesta manhã radiosa -
Gota de orvalho - Abelhas -
Brisa -
Folhas em remoinho -
Sou uma rosa!


Finalmente, Augusto de Campos incluiu também o grande "enigma" (o "riddle", como lhe chama recorrentemente Dickinson) da vida e da poesia da autora: falo, obviamente, da morte. E a morte não é interpretada por Dickinson como estado transitório que permite um acesso à imortalidade da alma. A morte, em Dickinson, define-se antes pelo mistério, pela incerteza e por seu tumular silêncio.
O poema "Senti um Féretro em Meu Cérebro", um dos grandes poemas de Dickinson que Augusto de Campos traduziu e incluiu na presente coletânea, é, neste sentido, exemplar: dificilmente encontramos na poesia de língua inglesa uma tão aterrorizante descrição da morte, interrrompida no verso final pela incapacidade da autora para lhe conferir um significado reconciliador.
A razão humana é incapaz de explicar a verdade final da nossa condição. Eis a profunda riqueza do legado poético de Dickinson: se os vitorianos procuravam explicar e limitar o mundo com a onisciência arrogante do espírito científico e industrial do século 19, Dickinson relembra-nos de que o mistério da existência humana estará para além de qualquer teoria.


EMILY DICKINSON: NÃO SOU NINGUÉM - POEMAS
Autora:
Emily Dickinson
Tradução e organização: Augusto de Campos
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 25 (112 págs.)
Avaliação: ótimo



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