São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 2008

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Crítica/"Granta em Português/3"

Coletânea reúne bons textos em tom de melancolia e desencanto

Salman Rushdie e Hanif Kureishi estão na terceira edição da "Granta" no Brasil

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

No ensaio que fez para o número cem da revista "Granta", o escritor Salman Rushdie versa sobre o caráter e o destino dos seres humanos, nos moldes do filósofo grego Heráclito, dizendo (e agora cita o romancista americano Saul Bellow) que o "caráter de um homem é sua sina".
Depois, fala da fase atual da literatura, composta por escritores desenraizados, nutridos em um profundo senso de impermanência. Classifica-a como "literatura de precariedade", na qual "nem o destino nem o caráter podem ser tidos como certos" (e muito menos a ligação entre ambos).
A edição número cem da "Granta" transformou-se, no Brasil, nesta "Granta em Português/3", a qual, descontando a capa de David Hockney e um conto de Ingo Schulze, segue mais ou menos a original. A "Granta" surgiu em 1979, na Inglaterra, das cinzas de uma revista da Universidade de Cambridge. As edições de 1983 e de 1993, dos "Melhores Jovens Escritores Britânicos", foram antológicas, trazendo autores como o próprio Rushdie, Julian Barnes, Ian McEwan (na de 1983), Hanif Kureishi e Nicholas Shakespeare (1993).
Os autores citados estão aqui (a edição da "Granta 100" ficou a cargo de William Boyd, um dos melhores jovens escritores britânicos da safra de 1983), além de antigos colaboradores, como Harold Pinter e Mario Vargas Llosa, e gente nova, como Helen Oyeyemi e Tash Aw. Todos contribuíram com material inédito para o número.
Voltando à questão do desarraigamento proposta por Rushdie, vale não só observar que alguns dos autores, a começar por este romancista britânico de origem indiana, nasceram em outro país (como Helen Oyeyemi, na Nigéria) ou têm ascendência estrangeira (como Kureishi, paquistanesa), mas também que várias das narrativas desta edição se passam em terra estrangeira.
A de Hanif Kureishi transcorre no Paquistão; a de Doris Lessing, na Rodésia do Sul (atual Zimbábue); a de Nicholas Shakespeare, em Bombaim; a de Ian Jack, em Bengala; a de Alan Hollinghurst, em Roma; a de Helen Simpson, em um vôo.
Trata-se de um dado superficial, que carece de investigação, pois há diferenças de fundo e de tom. Por exemplo: o significado da Rodésia semi-autobiográfica de Lessing é distinto daquele que Hollinghurst empresta à Roma de seu conto, cuja chave irônica aponta para uma "Morte em Veneza" rebaixada.

Desapego
Mas o mesmo sentimento de melancólico desapego, de instabilidade e desencanto, percorre, coincidentemente ou não, estes e outros relatos da coletânea.
Do ponto de vista fiduciário, digamos que há coisas tolas (a indagação de almanaque que se faz a alguns escritores: "Minha pergunta para mim"), pouco eficientes (o libreto de ópera de McEwan: não funciona sem música, vozes e aparato cênico), precárias (o conto inacabado de Martin Amis) e curiosas (o poema à Auden de Pinter).
No geral, porém, compõe um conjunto meritório e talvez indispensável ao colecionador. Destacam-se, além do conto de Hollinghurst, os esboços de personagem de Vargas Llosa e o retrato da decadência da civilização européia nas histórias de Ian Jack e Nicholas Shakespeare, esta última possivelmente o ponto alto da seleta.


MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

GRANTA EM PORTUGUÊS/3
Autor:
William Boyd (seleção)
Tradução: vários
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 39,90 (354 págs.)
Avaliação: bom



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