São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Mil desculpas, de novo o Haiti

Quando o bispo dom Luiz Flávio Cappio fez uma greve de fome, a transposição do rio São Francisco entrou na agenda. Em seguida, ao atear fogo ao próprio corpo, um ecologista do Mato Grosso do Sul, Francisco Anselmo de Barros, colocou em evidência os planos de construir usinas de álcool no Pantanal.
Com a morte do general Urano Bacellar em Porto Príncipe, era de se esperar que a intervenção militar no Haiti abrisse um franco debate. Isso não vai acontecer, apesar da turbulenta proximidade das eleições, marcadas para 7 de fevereiro.
É muito difícil criticar alguém nesse pesado silêncio sobre o destino do Haiti. A mídia, uma vez que o Brasil tem o comando militar da missão, talvez devesse seguir os passos de nossos homens, cobrindo diariamente o que se passa lá. De um lado, há os problemas financeiros que isso acarreta. De outro, há a certeza de que mesmo os vizinhos norte-americanos só se movem quando se sentem ameaçados por levas de "boat-people". Nos intervalos, o silêncio. Mesmo um jornal como o "Miami Herald", que está bem perto do Haiti, no meu entender, dedica-se discretamente ao tema.
Logo depois da morte do general Bacellar, o vice-presidente José Alencar declarou que era antipatriótico questionar nossa missão no Haiti. Ele tem uma ponta de razão, uma vez que é inútil sair rápido do Haiti só porque o general morreu.
No entanto, há um tipo de questionamento que me parece válido. Para onde estamos indo no Haiti? Valeu a pena tanto esforço? Essas questões, temos de respondê-las permanentemente. Em caso de respostas desanimadoras, compete-nos formular um plano de saída.
O problema central é que o Haiti não existe para as autoridades brasileiras. Quando o país decidiu disputar o comando das forças militares, o argumento do governo na Câmara (o líder era o Professor Luizinho) apontava para as possibilidades de ocuparmos um lugar no Conselho de Segurança.
Rebatíamos a fórmula com o argumento de que o Haiti é um país singularmente dramático e que não podíamos ver esse movimento de tropas como um ato eleitoreiro, ainda que a disputa fosse por uma cadeira no Conselho de Segurança.
Hoje, o próprio Itamaraty descarta o argumento de que fomos pensando no Conselho de Segurança. Mas ainda não explica claramente porque fomos. Há razões, há teóricos como Ricardo Seitenfus que defendem com brilho o deslocamento das tropas. Mas o debate está se dando post-festum, quando já estamos envolvidos até o pescoço.
A questão que colocava era esta: já houve outras ocupações militares do Haiti. Falharam. Quais os indícios de que esta vai dar certo? É prudente jogar tropas e dinheiro, arriscar a repetir os mesmos erros históricos?
Em primeiro lugar, há a ilusão de que um candidato não-populista vença, o que me parece muito difícil, nas circunstâncias. Dos 35 que se apresentaram, René Préval parece o mais forte. E é amigo de Aristides, exilado na África do Sul. Além disso, os últimos meses têm sido marcado por grandes tensões entre as forças políticas do Haiti.
Outro fato explosivo é o destino do ex-ministro Yvon Neptune, que está morrendo na cadeia.
O próprio Juan Gabriel Valdes, chefe da missão, admitiu temer que as eleições sejam financiadas pelos seqüestros. De fato, é o que pode explicar a onda de seqüestros do momento: há 35 candidatos a "prezidan" e 1.200 ao parlamento.
A contrário do Brasil, onde as eleições se fazem sob o signo do caixa dois, lá no Haiti é o caixa 38.
Ignorados por nós, no seu trabalho cotidiano, os soldados brasileiros enfrentam uma crítica pendular. Os setores mais ricos querem que se intensifique a repressão nos bairros pobres; os grupos de direitos humanos denunciam, com freqüência, ataques a inocentes e cumplicidade com a violência da Polícia Nacional do Haiti.
Muitos esperam que as eleições resolvam o problema e inaugurem o fluxo da ajuda econômica. Meu palpite é mais pessimista. A crise do Haiti -política, social, econômica e ecológica- precisa ser abordada com um projeto sólido e de longo alcance.
Quando fomos para o Haiti, era difícil questionar porque, afinal, precisávamos entrar no Conselho de Segurança. Agora, é antipatriótico, porque o general morreu. Em ambos os casos, o Haiti não existe. Ou é uma plataforma para conquistarmos a cadeira no Conselho ou é o espaço para reafirmar a honra e competência do Exército brasileiro, algo que não está em jogo.
José Alencar precisa ser generoso conosco, deixando-nos entrar no espaço da pátria amada idolatrada com todas as nossas dúvidas. Ou então reunir-se com Lula e formular, com suas reflexões sobre o Haiti, um argumento que nos convença da importância da presença atual e nos informe sobre o projeto estratégico de recuperação do país.
Ainda me lembro daquela partida de futebol da seleção brasileira, o estádio construído às pressas, o Suplicy tentando reproduzir uma jogada de Ronaldinho Gaúcho na tribuna do Congresso.
Estávamos embalados para liderar o continente, como já estivemos para revolucionar o Brasil, para fazer uma ampla reforma agrária, para moralizar a vida política com nossas bandeiras éticas.
Se o buraco aqui já é mais embaixo, caro vice, imagine na política externa, ali onde Estados Unidos, França e Canadá, de uma certa forma, já fracassaram.


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