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FERNANDO GABEIRA
Mil desculpas, de novo o Haiti
Quando o bispo dom Luiz
Flávio Cappio fez uma greve de fome, a transposição do rio
São Francisco entrou na agenda.
Em seguida, ao atear fogo ao próprio corpo, um ecologista do Mato Grosso do Sul, Francisco Anselmo de Barros, colocou em evidência os planos de construir usinas
de álcool no Pantanal.
Com a morte do general Urano
Bacellar em Porto Príncipe, era de
se esperar que a intervenção militar no Haiti abrisse um franco debate. Isso não vai acontecer, apesar da turbulenta proximidade
das eleições, marcadas para 7 de
fevereiro.
É muito difícil criticar alguém
nesse pesado silêncio sobre o destino do Haiti. A mídia, uma vez
que o Brasil tem o comando militar da missão, talvez devesse seguir os passos de nossos homens,
cobrindo diariamente o que se
passa lá. De um lado, há os problemas financeiros que isso acarreta. De outro, há a certeza de que
mesmo os vizinhos norte-americanos só se movem quando se
sentem ameaçados por levas de
"boat-people". Nos intervalos, o
silêncio. Mesmo um jornal como
o "Miami Herald", que está bem
perto do Haiti, no meu entender,
dedica-se discretamente ao tema.
Logo depois da morte do general Bacellar, o vice-presidente José
Alencar declarou que era antipatriótico questionar nossa missão
no Haiti. Ele tem uma ponta de
razão, uma vez que é inútil sair
rápido do Haiti só porque o general morreu.
No entanto, há um tipo de questionamento que me parece válido. Para onde estamos indo no
Haiti? Valeu a pena tanto esforço? Essas questões, temos de respondê-las permanentemente. Em
caso de respostas desanimadoras,
compete-nos formular um plano
de saída.
O problema central é que o Haiti não existe para as autoridades
brasileiras. Quando o país decidiu disputar o comando das forças militares, o argumento do governo na Câmara (o líder era o
Professor Luizinho) apontava para as possibilidades de ocuparmos
um lugar no Conselho de Segurança.
Rebatíamos a fórmula com o
argumento de que o Haiti é um
país singularmente dramático e
que não podíamos ver esse movimento de tropas como um ato
eleitoreiro, ainda que a disputa
fosse por uma cadeira no Conselho de Segurança.
Hoje, o próprio Itamaraty descarta o argumento de que fomos
pensando no Conselho de Segurança. Mas ainda não explica claramente porque fomos. Há razões, há teóricos como Ricardo
Seitenfus que defendem com brilho o deslocamento das tropas.
Mas o debate está se dando post-festum, quando já estamos envolvidos até o pescoço.
A questão que colocava era esta:
já houve outras ocupações militares do Haiti. Falharam. Quais os
indícios de que esta vai dar certo?
É prudente jogar tropas e dinheiro, arriscar a repetir os mesmos
erros históricos?
Em primeiro lugar, há a ilusão
de que um candidato não-populista vença, o que me parece muito difícil, nas circunstâncias. Dos
35 que se apresentaram, René
Préval parece o mais forte. E é
amigo de Aristides, exilado na
África do Sul. Além disso, os últimos meses têm sido marcado por
grandes tensões entre as forças
políticas do Haiti.
Outro fato explosivo é o destino
do ex-ministro Yvon Neptune,
que está morrendo na cadeia.
O próprio Juan Gabriel Valdes,
chefe da missão, admitiu temer
que as eleições sejam financiadas
pelos seqüestros. De fato, é o que
pode explicar a onda de seqüestros do momento: há 35 candidatos a "prezidan" e 1.200 ao parlamento.
A contrário do Brasil, onde as
eleições se fazem sob o signo do
caixa dois, lá no Haiti é o caixa
38.
Ignorados por nós, no seu trabalho cotidiano, os soldados brasileiros enfrentam uma crítica
pendular. Os setores mais ricos
querem que se intensifique a repressão nos bairros pobres; os grupos de direitos humanos denunciam, com freqüência, ataques a
inocentes e cumplicidade com a
violência da Polícia Nacional do
Haiti.
Muitos esperam que as eleições
resolvam o problema e inaugurem o fluxo da ajuda econômica.
Meu palpite é mais pessimista. A
crise do Haiti -política, social,
econômica e ecológica- precisa
ser abordada com um projeto sólido e de longo alcance.
Quando fomos para o Haiti, era
difícil questionar porque, afinal,
precisávamos entrar no Conselho
de Segurança. Agora, é antipatriótico, porque o general morreu.
Em ambos os casos, o Haiti não
existe. Ou é uma plataforma para
conquistarmos a cadeira no Conselho ou é o espaço para reafirmar a honra e competência do
Exército brasileiro, algo que não
está em jogo.
José Alencar precisa ser generoso conosco, deixando-nos entrar
no espaço da pátria amada idolatrada com todas as nossas dúvidas. Ou então reunir-se com Lula
e formular, com suas reflexões sobre o Haiti, um argumento que
nos convença da importância da
presença atual e nos informe sobre o projeto estratégico de recuperação do país.
Ainda me lembro daquela partida de futebol da seleção brasileira, o estádio construído às pressas, o Suplicy tentando reproduzir
uma jogada de Ronaldinho Gaúcho na tribuna do Congresso.
Estávamos embalados para liderar o continente, como já estivemos para revolucionar o Brasil,
para fazer uma ampla reforma
agrária, para moralizar a vida
política com nossas bandeiras éticas.
Se o buraco aqui já é mais embaixo, caro vice, imagine na política externa, ali onde Estados Unidos, França e Canadá, de uma certa forma, já fracassaram.
@ - contato@gabeira.com.br
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