São Paulo, quinta-feira, 14 de fevereiro de 2002

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"DICIONÁRIO-ALMANAQUE DE COMES & BEBES"

Nada de culinária, nada de diversão

LUIZ HENRIQUE HORTA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

U m novo dicionário de culinária, ainda mais em português, deveria ser motivo de comemoração. Infelizmente não é o caso deste "Comes & Bebes", de Cláudio Fornari. O livro é uma decepção.
Dicionários não são livros comuns, podem ser verificados e ter sua qualidade avaliada como num laboratório. Há quatro maneiras para fazê-lo.
A primeira etapa é prová-lo nas situações imediatas do dia-a-dia, por casualidade. Quando recebi o livro, estava nessa situação, diante de dois cozinheiros que perguntavam sobre o uso da cal virgem na feitura de doces, como mamão verde e abóbora. Abro o dicionário no verbete cal: "diminutivo de caloria". Nada mais.
Outra questão surgida no mesmo dia foi a respeito do café expresso e seu teor de cafeína. Na página 75, afirma: "É o café vapt-vupt". Uhn? E o verbete cafeína termina com uma barbaridade: recomenda jogar água fervendo sobre as folhas de chá, descartar essa água (!) e colocar outra, para diminuir a cafeína (com a consequência horrível de acabar com o chá inteiramente).
A segunda forma é o exame de verbetes sobre coisas que conhecemos e estimamos. Então fui direto ao verbete sobre coelho e aprendo que é um "lindo animalzinho presente há mais de 4.000 anos na culinária chinesa". Continuei com amêndoa, onde fico sabendo (para quê?!) que Cleópatra usava uma pasta delas com mel para testar a gula de Antônio.
Passo à terceira prova, comparação com outros dicionários e obras de referência, como "The Cook's Encyclopaedia", de Tom Stobart, "The Oxford Companion to Food", de Alan Davidson, e "Pequeno Dicionário de Gastronomia", de Maria Lúcia Gomensoro. Aqui o massacre é evidente.
Aos verbetes testados acima, coelho e amêndoa, acrescenta-se um bem regional, para ver se o desempenho do examinado melhorava: pitanga. Sem efeito algum, o dicionário "Comes & Bebes" continuava tremendamente na retaguarda com desempenho baixo.
Todos os outros traçam breve história da amêndoa, dizem do uso amplo na culinária, dão informações básicas. Nem sombra de Cleópatra e Antônio... Repetem no verbete coelho essa enxuta eficácia, sem jogos de palavras e juízos pessoais. Tom Stobart é certeiro e sóbrio. Alan Davidson é parecido, mas permite-se uma sutil graça britânica, produzindo provavelmente o melhor desses livros. O coelho aparece longamente explicado em todos eles. Com história, receitas, variações de sabor e espécies. Restou a pitanga, como tira-teimas. Davidson, sim!, tem um verbete -com o nome em português- de dois parágrafos sobre a fruta. Está tudo ali: sabor, cor, utilização (da geléia ao vinagre). Gomensoro é básica. E Fornari: "Frutinha mais bonita que gostosa, quando ao natural".
Finalmente o teste derradeiro, trabalhoso: lê-lo inteiro. Foram sucedendo-se definições infelizes ou apressadas e brincadeiras desnecessárias. Pernil é "a coxa do porco" (e o cordeiro?). Falafel é "iguaria árabe de grão-de-bico" (Davidson diz ser o prato nacional de Israel, além de consumido em todo o Oriente Médio). Vieira é "uma espécie de amêijoa" (que ele grafa "almêijoa"...) e coquille Saint-Jacques aparece como "molusco cozido fora da casca e depois nela servido". Timo "é o mesmo que tomilho", diz, ignorando que timo também seja a víscera chamada em português de moleja, nada menos que o ris de veau, uma preciosidade gastronômica.
Há muito mais, muitas opiniões, que importam pouco num dicionário. Em termos de culinária, quase nada. Em termos de diversão, nenhuma.
Para quem quer um companheiro melhor na cozinha, que fale português, recomendo o livro de Maria Lúcia Gomensoro. Quem quer se aprofundar mais, e ter realmente uma única obra de consulta em mãos (sem se importar que o companheiro fale inglês), um dos estrangeiros é melhor opção.

Dicionário-Almanaque de Comes & Bebes
 
Autor: Cláudio Fornari
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 38 (359 págs.)



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