São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005

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NELSON ASCHER

A Segunda Guerra acabou

O último entre os grandes conflitos armados a respeito do qual o público em geral tem, se não informações e conhecimentos detalhados, pelo menos um repertório opulento de imagens mentais, é a Segunda Guerra Mundial. Contribuem para tanto sua amplitude e extensão geográfica, bem como o fato de seu desenrolar ter coincidido com progressos notáveis nos meios de comunicação de massa. E, apesar de ter terminado há seis décadas, resta ainda, espalhada pelo planeta, muita gente que a testemunhou. Daí que esta tenha se tornado a guerra por excelência, aquela com a qual qualquer outra acaba sendo comparada.
A imprensa americana e européia, opondo-se às recentes invasões do Afeganistão e do Iraque, não esperou muito para equacionar ambas as campanhas com a Guerra do Vietnã. No entanto, fora dos EUA, e mesmo lá, poucos têm uma noção realista do que ocorreu, nos anos 60/70, na Indochina. A média dos comentadores, que usa o termo Vietnã a torto e a direito, acharia difícil recordar o nome de três generais de cada um dos lados, ou suas três principais batalhas.
Não é arriscado, portanto, dizer que, quando se fala de guerra, o inconsciente coletivo da humanidade ainda evoca preferencialmente Stalingrado, a Batalha da Inglaterra, Pearl Harbor, Tobruk, Okinawa, a queda e a libertação de Paris, as Ardennas, Hiroshima e Nagasaki. Se bem que uma conflagração tão intensa e complexa contenha todos os tipos de exemplos e lições, a Segunda Guerra não foi uma das mais típicas.
Ao contrário do que aconteceu em quase todas as demais, essa foi uma guerra na qual era possível distinguir os "mocinhos" dos "bandidos". Pode-se afirmar que Stálin não era em nada melhor do que Hitler e que a dupla ditatorial manteve, por dois anos cruciais, uma autêntica aliança. A guerra principiou oficialmente quando tanto a Alemanha como a URSS atacaram a Polônia. Porém, tão logo os nazistas invadiram a URSS, russos, ucranianos etc., mesmo povos que acolheram os alemães como libertadores, compreenderam que, nas circunstâncias, Stálin era o mal menor.
Outro aspecto atípico da Segunda Guerra foi a clareza dos resultados. Graças à decisão tomada pelos aliados de exigirem a rendição incondicional das potências do Eixo, o desenlace foi conclusivo. Evitou-se, desse modo, o que sucedera no final da Primeira Guerra, quando a Alemanha imperial não se convenceu de ter sido vencida. Como, por causa da revolução de 1917, que tirou a Rússia do conflito, os alemães não haviam sido derrotados na frente oriental, os russos conseguiram apenas adiar o confronto, tendo de resolvê-lo, uma geração mais tarde, em condições mais desfavoráveis.
A Primeira Guerra, com seu fim indefinido, também foi um conflito no qual não era simples distinguir moralmente os contendores. Malgrado a Alemanha e a monarquia Austro-Húngara terem sido os agressores, sua vitória não teria as implicações cataclísmicas de um triunfo posterior do Eixo e, se fosse rápida, talvez fosse mais benéfica para a Europa do que os quatro anos de carnificina gerados pelo impasse inicial.
Ninguém, contudo, salvo os nostálgicos confessos do nazismo, imagina que o desfecho da Segunda Guerra foi negativo. Já, no que concerne a inúmeras outras guerras, nada é tão evidente assim. Teria sido pior para os vietnamitas se os americanos persistissem e ocupassem Hanói? Teria sido melhor para os coreanos se a península inteira houvesse sido entregue a Kim Il Sung? Será que os argelinos não teriam se beneficiado se De Gaulle resolvesse liquidar a Frente Nacional de Libertação (FNL) antes de lhes conceder a independência? Como viveriam os cubanos hoje se a invasão na Baía dos Porcos, em 1961, tivesse deposto a ditadura castrista? Quanto a essas perguntas, não há consenso algum que se assemelhe àquele relativo aos eventos de 1939-45. Nem faltam pessoas insatisfeitas com o desfecho da Guerra Fria, se bem que sejam mais raras nos países que pertenciam à órbita soviética.
A compreensão da atual crise planetária é prejudicada por um excesso de analogias equivocadas (e provavelmente inconscientes) com a Segunda Guerra e sofre também de um déficit de paralelos úteis que poderiam ser propostos. Por exemplo, não estamos mais numa época na qual, para destruir uma fábrica de munições, a RAF (Royal Air Force britânica) precisava arrasar metade de tal ou qual cidade inimiga. Um míssil disparado hoje de um helicóptero acerta um terrorista em seu apartamento sem danificar a estrutura do edifício. Tampouco voltaremos a ver milhares de blindados se enfrentando como em Kursk (1943), na URSS, ou no Passo de Mitla (1973), no deserto do Sinai, nem batalhas aéreas como as travadas sobre Londres em 1940 ou sobre o vale libanês do Bekaa em 1982.
Os paralelos pertinentes entre a Guerra Global contra o Terror e a Segunda Guerra Mundial são justamente os menos lembrados. Eles não são bélicos, militares, táticos ou estratégicos, mas antes ideológicos. Como nos anos 30/40, as sociedades democráticas e abertas do Ocidente se vêem ameaçadas agora por uma ideologia expansionista e imperial, totalitária e triunfalista. Como nos tempos de então, as elites européias e parcela significativa das americanas preferem, em troca de vantagens imediatas, ignorar a dimensão do perigo. E, como naqueles dias, o rancor que os intelectuais ocidentais dedicam à civilização burguesa os leva a idealizarem o islamismo radical, seguindo de perto aqui seus predecessores que outrora simpatizaram e colaboraram seja com o stalinismo, seja com o nacional-socialismo.


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