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BERNARDO CARVALHO
A compreensão selvagem
No final dos anos 40, no
auge da carreira, depois de
já ter estrelado filmes como "Una
Mujer sin Cabeza", "Mosquita
Muerta" e "Yo No Soy la Mata
Hari", entre outros, a atriz e comediante argentina Niní Marshall (1903-1996), grande sucesso
do rádio portenho, foi convidada
a se apresentar diante das presas
de uma penitenciária de Lima,
no Peru. Na última hora, decidiu
trocar a ordem dos personagens
do seu show e começar por um
monólogo de Belarmina, uma
das suas criações mais populares,
inspirada numa "criadita" rural.
E foi só quando subiu ao palco,
diante de uma platéia de centenas de mulheres atônitas, que se
deu conta de que já não podia representar. Eram todas mais ou
menos índias, de diversas idades,
com as cabeças raspadas e aventais cinzentos, a imagem escarrada de Belarmina, cujos cabelos
foram raspados por causa dos
piolhos.
O escritor e jornalista argentino
Leopoldo Brizuela conheceu Niní
Marshall em 1990, quando ela já
vivia retirada fazia mais de dez
anos, por causa de um derrame, e
se inspirou na cena da penitenciária de Lima para escrever um
romance encantatório, feito de
uma paixão alucinada pela literatura: "Inglaterra, uma Fábula"
(1999), que a editora Objetiva deve publicar em setembro. O livro
é dedicado a Niní Marshall e aos
pais do autor. E é resultado do
deslumbramento pela capacidade que a arte tem, em seus momentos mais fulgurantes, de se
igualar àquilo que ela representa,
de deixar de representar para ser.
"Inglaterra, uma Fábula" é feito de literatura, de uma profusão
de referências literárias (que vão
de Shakespeare a Isak Dinensen,
ambos citados na epígrafe) mas
também da cultura popular (de
Jim Morrison a Amália Rodrigues). Tanto faz saber de onde o
autor as tirou. Sua mágica está
na habilidade de encaixá-las numa narrativa mirabolante, que
se desdobra sem parar, como se
fossem fato, como se o romance
reescrevesse a história do mundo
a partir da literatura. "Inglaterra, uma Fábula" exorta o leitor a
reler toda a literatura (a começar
por esse romance) com os olhos
de quem a iguala àquilo que ela
representa.
O livro conta a epopéia do
grande circo inglês The Great
Will, originalmente uma trupe
shakespeariana, herdeira da lendária companhia itinerante dos
Cavaleiros da Rosa, onde teria se
iniciado o próprio Shakespeare.
Do final do século 18 ao início do
século 20, os artistas singram os
mares a bordo do Almighty Word
(Palavra Toda-poderosa), indo
terminar seus dias no extremo sul
do continente americano, numa
pequena ilha nos confins da Terra do Fogo, de onde teria se originado "A Tempestade", de Shakespeare, atraídos pelo fascínio
inconsciente de se igualar ao que
representam.
Esse fascínio é chamado o tempo todo ao longo do livro por personagens que se debatem à procura do "nome do seu destino".
Querem saber a que vieram, para
onde vão. Mas a resposta não
vem fácil. "Inglaterra" é um romance carregado de metáforas e
imagens evocativas, como se o
que de fato estivesse sendo narrado ali fosse uma outra coisa, que
não se entrega, mas que guia tudo e todos, que varre o mundo,
carregando o Almighty Word de
um lado para o outro, oceano
afora, à deriva, para lugares insensatos, para onde nunca se
pensou em ir. É sempre um pouco
ridículo dar a esse fascínio o nome de imaginação ou de desejo.
São palavras surradas. Brizuela
escreve seu romance como se estivesse à procura de outra, de uma
nova palavra que ainda não foi
dita mas que lhes correspondesse.
Assim como em Beckett, que
certamente não é um dos seus autores favoritos e cujo silêncio significa mais do que o que quer que
possa ser dito, aqui também tudo
se resume em saber como igualar
as palavras à força daquilo que
elas representam (e que é a sua
ausência), sem no entanto perdê-las. Por uma via diametralmente
oposta à rarefação de Beckett,
Brizuela também busca dizer o
silêncio, mas de um modo paradoxal, juvenil, barroco, pela profusão imaginativa, pelo excesso,
pelo transbordamento: nomeia o
silêncio sem parar, de todas as
formas possíveis, e com isso, nesse
exercício enlouquecido de imaginação, parece falar o tempo inteiro do que está para além das palavras e ao que só o jorro das
imagens poderá aludir, nem que
seja pela falta, como metáfora.
A resposta virá no final do romance, da "única personagem
que Shakespeare não forjara com
as suas palavras, mas com o seu
silêncio": o selvagem Caliban, de
"A Tempestade". Virá de um novo entendimento, de uma compreensão "selvagem" das palavras, pois "em algum momento
da história, o Verbo tinha deixado de ser um elemento de libertação para se converter numa arma
de conquista".
À imagem de Niní Marshall
diante das presas, em Lima, com
seus trajes da "criadita" Belarmina, a condessa de Broadback,
protagonista do romance e diretora do The Great Will, afinal interpreta Caliban diante dos "selvagens" da Terra do Fogo e compreende o que a levou, contra todo o bom senso, até o fim do mundo. Essa compreensão, curiosamente, só pode vir dos mal-entendidos, da possibilidade de recriação e reinvenção da linguagem.
Desse estado "selvagem" capaz de
imaginar e ler no mundo o seu silêncio, o que o mundo não diz. Esse estado que você pode chamar
de literatura ou de arte. E que, como todo povo "selvagem", vive
sob o risco de ser exterminado a
qualquer instante.
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