São Paulo, terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

A compreensão selvagem

No final dos anos 40, no auge da carreira, depois de já ter estrelado filmes como "Una Mujer sin Cabeza", "Mosquita Muerta" e "Yo No Soy la Mata Hari", entre outros, a atriz e comediante argentina Niní Marshall (1903-1996), grande sucesso do rádio portenho, foi convidada a se apresentar diante das presas de uma penitenciária de Lima, no Peru. Na última hora, decidiu trocar a ordem dos personagens do seu show e começar por um monólogo de Belarmina, uma das suas criações mais populares, inspirada numa "criadita" rural.
E foi só quando subiu ao palco, diante de uma platéia de centenas de mulheres atônitas, que se deu conta de que já não podia representar. Eram todas mais ou menos índias, de diversas idades, com as cabeças raspadas e aventais cinzentos, a imagem escarrada de Belarmina, cujos cabelos foram raspados por causa dos piolhos.
O escritor e jornalista argentino Leopoldo Brizuela conheceu Niní Marshall em 1990, quando ela já vivia retirada fazia mais de dez anos, por causa de um derrame, e se inspirou na cena da penitenciária de Lima para escrever um romance encantatório, feito de uma paixão alucinada pela literatura: "Inglaterra, uma Fábula" (1999), que a editora Objetiva deve publicar em setembro. O livro é dedicado a Niní Marshall e aos pais do autor. E é resultado do deslumbramento pela capacidade que a arte tem, em seus momentos mais fulgurantes, de se igualar àquilo que ela representa, de deixar de representar para ser.
"Inglaterra, uma Fábula" é feito de literatura, de uma profusão de referências literárias (que vão de Shakespeare a Isak Dinensen, ambos citados na epígrafe) mas também da cultura popular (de Jim Morrison a Amália Rodrigues). Tanto faz saber de onde o autor as tirou. Sua mágica está na habilidade de encaixá-las numa narrativa mirabolante, que se desdobra sem parar, como se fossem fato, como se o romance reescrevesse a história do mundo a partir da literatura. "Inglaterra, uma Fábula" exorta o leitor a reler toda a literatura (a começar por esse romance) com os olhos de quem a iguala àquilo que ela representa.
O livro conta a epopéia do grande circo inglês The Great Will, originalmente uma trupe shakespeariana, herdeira da lendária companhia itinerante dos Cavaleiros da Rosa, onde teria se iniciado o próprio Shakespeare. Do final do século 18 ao início do século 20, os artistas singram os mares a bordo do Almighty Word (Palavra Toda-poderosa), indo terminar seus dias no extremo sul do continente americano, numa pequena ilha nos confins da Terra do Fogo, de onde teria se originado "A Tempestade", de Shakespeare, atraídos pelo fascínio inconsciente de se igualar ao que representam.
Esse fascínio é chamado o tempo todo ao longo do livro por personagens que se debatem à procura do "nome do seu destino". Querem saber a que vieram, para onde vão. Mas a resposta não vem fácil. "Inglaterra" é um romance carregado de metáforas e imagens evocativas, como se o que de fato estivesse sendo narrado ali fosse uma outra coisa, que não se entrega, mas que guia tudo e todos, que varre o mundo, carregando o Almighty Word de um lado para o outro, oceano afora, à deriva, para lugares insensatos, para onde nunca se pensou em ir. É sempre um pouco ridículo dar a esse fascínio o nome de imaginação ou de desejo. São palavras surradas. Brizuela escreve seu romance como se estivesse à procura de outra, de uma nova palavra que ainda não foi dita mas que lhes correspondesse.
Assim como em Beckett, que certamente não é um dos seus autores favoritos e cujo silêncio significa mais do que o que quer que possa ser dito, aqui também tudo se resume em saber como igualar as palavras à força daquilo que elas representam (e que é a sua ausência), sem no entanto perdê-las. Por uma via diametralmente oposta à rarefação de Beckett, Brizuela também busca dizer o silêncio, mas de um modo paradoxal, juvenil, barroco, pela profusão imaginativa, pelo excesso, pelo transbordamento: nomeia o silêncio sem parar, de todas as formas possíveis, e com isso, nesse exercício enlouquecido de imaginação, parece falar o tempo inteiro do que está para além das palavras e ao que só o jorro das imagens poderá aludir, nem que seja pela falta, como metáfora.
A resposta virá no final do romance, da "única personagem que Shakespeare não forjara com as suas palavras, mas com o seu silêncio": o selvagem Caliban, de "A Tempestade". Virá de um novo entendimento, de uma compreensão "selvagem" das palavras, pois "em algum momento da história, o Verbo tinha deixado de ser um elemento de libertação para se converter numa arma de conquista".
À imagem de Niní Marshall diante das presas, em Lima, com seus trajes da "criadita" Belarmina, a condessa de Broadback, protagonista do romance e diretora do The Great Will, afinal interpreta Caliban diante dos "selvagens" da Terra do Fogo e compreende o que a levou, contra todo o bom senso, até o fim do mundo. Essa compreensão, curiosamente, só pode vir dos mal-entendidos, da possibilidade de recriação e reinvenção da linguagem. Desse estado "selvagem" capaz de imaginar e ler no mundo o seu silêncio, o que o mundo não diz. Esse estado que você pode chamar de literatura ou de arte. E que, como todo povo "selvagem", vive sob o risco de ser exterminado a qualquer instante.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Visuais: Dora Longo Bahia leva "paisagens" e rock ao Rio
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.