São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 1998

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A volta do nacionalista

José Ramos Tinhorão, um dos mais polêmicos críticos musicais e historiadores dos anos 60 e 70, recebe nova chance de ser ouvido com lançamento de dois livros

Paulo Giandalia/Folha Imagem
José Ramos Tinhorão gesticula em sua kitchenette no centro de SP


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

A planta daninha volta a crescer. O historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão (o último sobrenome é apelido recebido em redação de jornal, inspirado na erva homônima, por alguns chamada comigo-ninguém-pode), 70, odiado por dez entre dez astros que tenham passado pela MPB entre os 60 e os 70, reemerge de um ostracismo (in)voluntário e cai, de novo, nas prateleiras das livrarias.
Acaba de ser reeditado, em versão revista e ampliada, o livro "Música Popular - Um Tema em Debate" (1966), um dos primeiros em que o então crítico atacou a descaracterização que, segundo ele, a bossa nova, americanizada, teria trazido à MPB. Em abril, chega à primeira edição brasileira sua "História Social da Música Popular Brasileira" (90), antes só lançada em Portugal.
Tinhorão recebeu a Folha em sua kitchenette no centro de São Paulo, onde mora entre livros, discos de vinil e poeira. "O acervo que existe aqui você não encontra na Biblioteca Nacional nem no MIS", gaba-se. Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Nos anos 60, você encampou uma série de posições polêmicas. Alguma dessas posições precisou ser revista após 30 anos?
José Ramos Tinhorão -
Eu não encampei, eu criei. A terceira edição do meu livro responde isso. O que poderia ter que mexer seriam os estudos de caráter polêmico. Mas meu enfoque é histórico-sociológico. Procuro os dados sobre a existência do fenômeno e tento demonstrá-lo, comprová-lo.
A questão da bossa nova era polêmica. Aqueles caras faziam parte da classe média ascendente do Rio. Eram modernos entre aspas, como são agora esses meninos que seguem a última linha da moda, vêem o U2 (pronuncia "U-Dois") sem entender uma palavra. O cara gosta do que não entende -o que chamo de alienação. É uma contradição.
Quando eu chego às minhas conclusões, elas dão tapas na cara das pessoas que vivem aquela ilusão. Então elas caem em cima de mim. O livro atinge as pessoas.
Folha - Atingiu há 30 anos, ainda atinge hoje?
Tinhorão -
Atinge hoje. Os filhos dos admiradores da bossa estão indo ao U-Dois. O fenômeno é o mesmo. Por isso respondo à sua pergunta: mudar o quê?
Folha - Você tem discos de bossa nova? Gosta de ouvir?
Tinhorão -
Tenho tudo. Como cidadão, às vezes acho interessantezinha uma coisa e outra. O que me irrita é ver que se gasta talento e criatividade para falar em linguagem harmônica americana. Veja, me meti a dizer que achava Tom Jobim um excelente músico sem criatividade. Ah, para quê?
Como começa o "Sabiá", que dizem que é a coisa mais brasileira (cantarola)? Ouve a "Overture" da "Ópera dos Três Vinténs" de Kurt Weill (cantarola). Lá está o "Sabiá". "Águas de Março"? Um disco gravado em 1956, de homenagem a uma tal de Inara. Uma das faixas, "Águas do Céu" (a contracapa grafa "Água do Céu"), com Leny Eversong, vamos ouvir (coloca o disco: "É chuva de Deus, é chuva abençoada/ É água divina, é alma lavada").
O caso dele é dramático, se fosse falta de talento... A grande tragédia dele é que não surrupiava deliberadamente. Era um barriga de aluguel da música popular. Não era um criador, mas não posso dizer isso que cai toda a classe média em cima de mim.
A última instância da discussão cultural é política, é isso que as pessoas não entendem. Se você denuncia as ilusões da classe média, obriga-a a pensar politicamente, e é isso que ela não admite.
Folha - O que ter apontado isso provocou em sua vida?
Tinhorão -
Isso que você está vendo aqui. Estou reduzido a uma kitchenette cheia de coisas, explodindo. Fiz uma opção, pago meu preço: pichado, não reconhecido.
Folha - Você é magoado por isso?
Tinhorão -
Não, porque compreendo. Se é assim mesmo para que vou chiar? Se você fala, pode dizer que não falou. Se escreve, não pode dizer que não escreveu. Escrevi, e escrevo tudo que penso.
Folha - Se houvesse dito em vez de escrever, desdiria algo?
Tinhorão -
Não. Não, não. E aí eu não teria a credibilidade que tenho. Vou me elogiar um pouco: não encontro um autor que, após 30 anos, reedite um livro dizendo que não precisa rever nada.
Folha - Não é uma atitude defensiva sua por ter sido tão atacado?
Tinhorão -
Nunca reclamei, porque tenho pensamento democrático. Se tenho direito de fazer análises que ferem pessoas, elas têm direito de chiar. Só lamento que não me desmontem dizendo que falei coisas assim e assim, que não eram desse jeito, e mostrem fontes que provem isso. Não, o que você vê são coisas do tipo "o grande marxista vulgar" do país.



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