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'Exilei-me naturalmente',
afirma o ex-crítico
da Reportagem Local
"Eu me exilei naturalmente",
diz José Ramos Tinhorão, negando que suas posturas polêmicas tenham sido responsáveis pelo afastamento da crítica e pela falta de
reconhecimento que ele próprio
acusa em relação a seu trabalho.
Mais adiante, admite: "A crítica
musical me prejudicou muito, as
pessoas têm suas paixões, há implicações comerciais". A seguir,
ele fala sobre globalização, rap,
mangue beat e nacionalismo.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Folha - Com que grau de interesse você continua a acompanhar as
manifestações da música popular?
José Ramos Tinhorão - Eu continuo vivo, né? Outro dia me procurou um rapazinho que transa
nessa área de rap de periferia. Eu disse: "Ô, rapá, você sabia que o rap
é uma nova versão da
embolada?". Expliquei
que foi preciso os garotos de rua de Nova York
começarem a dançar daquele jeito e cantar falado para vir ao Brasil e
passar a ser percebido.
Mas é embolada.
/pingFolha - Toda uma
vertente que nasceu da
bossa nova se tornou hegemônica nas últimas
décadas, e sua versão se
tornou a oficial até por
não haver contestadores. Você se exilou ou foi
expulso desse circuito?
Tinhorão - Eu me
exilei naturalmente.
Quando você nada contra a corrente, não tem
jeito, você vai ser um solitário. Eu não cedi nunca. Não quero citar nomes, mas colegas meus
conhecidos cederam e
foram simpáticos e conheciam pessoalmente o
Jobim. Agora eu, por um
dever de honestidade,
não posso misturar possíveis simpatias pessoais
com a análise. Análise é
análise.
Tinhorão - Não faltam hoje colaborações
"contra a corrente"
nesse tipo de análise?
Tinhorão - Mas isso
está na "História Social
da Música Popular".
Chego ao tropicalismo e
termino falando do
rock. A partir daí, digo,
passa a ser declaradamente a música estrangeira feita no Brasil por
brasileiros, vivemos a
era do rock. Termina aí.
Outra coisa que se
confirmou: eu dizia lá que foi um
equívoco do Exército ter prendido
Caetano Veloso e Gilbeto Gil, porque eles eram 1964 na música popular.
O que era a proposta dos militares? Aquele nacionalismo getuliano, Roberto Campos, ministro do
Planejamento, dizendo: "Vamos
abrir o jogo e pagar para ver, quem
tiver a garrafa vende, quem não tiver se dana -deixa quebrar, importa, busca tecnologia estrangeira". É isso que FHC está fazendo
agora de forma mais sofisticada,
com o neo-liberalismo.
De certa forma, temos o Roberto
Campos falando a mesma coisa
que eu falo de mim: "Eu não dizia?". Está ele aí triunfante -mas
ele triunfa pela direita e eu triunfo
pela esquerda.
Mas os jovens realmente cultos
gostavam de bossa nova, jazz e tal.
Aí o Caetano entra, correndo por
fora, e atrai esses jovens para a guitarra. Portanto, ele estava dentro
do conceito econômico dos militares de 64. "Por que não nos habilitarmos a receber a tecnologia musical estrangeira e desenvolvê-la
aqui? Nós vamos gozar o benefício." E estão gozando até hoje.
Por exemplo, eu cito o papel hediondo do Roberto Carlos no meu
livro. É aquele rapazinho que todas
as mães de famílias militares gostariam que fosse o namorado da filha. Por quê? Enquanto havia outros rapazes revoltados, que andavam fazendo músicas pregando a
revolução social, indo explodir
bomba e sequestrar embaixadores, ele, com aquele cabelo tão bonito, cantava coisas do consumo.
Folha - Como esse tipo de postura que você mantém resiste a um
mundo globalizado?
Tinhorão - O que se chama de
globalização do mundo não é a
globalização do mundo, é a globalização do capital financeiro. É a
realidade imposta pelo capital. Há
ricos e há pobres. Se você considera que a esquerda está ao lado dos
pobres, os conservadores estão ao
lado dos ricos. Pronto.
Folha - Você já usou Internet?
Tinhorão - Não. Mas é um instrumento, uma ferramenta.
Folha - Essa ferramenta talvez inviabilize, pela quebra de barreiras
que promove, o que você professa,
a pureza de cultura nacional.
Tinhorão - Não, não cai, rapaz,
porque não cai a fronteira da pobreza, nem a da incultura. Tudo isso é uma mentira. Quem se beneficia da Internet? Uma minoria.
O contexto, hoje, mostra o grau
de afastamento das pessoas que
gostam de U-Dois, que são modernas, que calçam o último tipo de
tênis (olha o tênis do repórter), sabem de tudo, mas não têm idéia de
tempo, de ordem alfabética.
Folha - Num mundo ideal do Tinhorão, como seria a MPB hoje?
Tinhorão - Seria diversificada,
necessariamente, mas corresponderia ao contexto cultural de cada
faixa dentro do processo cultural
brasileiro. Se o cara parte para
uma forma de conciliação com a
sua realidade, dizendo: "É, eu sou
pobre mesmo, então vou raciocinar como pobre", ele passa a fazer
coisas coerentes com isso. Aí ele
não se aliena.
Folha - Suponha um jovem como
aqueles que fizeram o mangue
beat, de classe média, que conhecem Internet, gostam de sons estrangeiros e manifestações regionais e cantam que "a cidade não
pára, a cidade só cresce/ o de cima
sobe, o debaixo desce". Cabe o rótulo de alienado aí?
Tinhorão - Eles fazem uma conciliação, é a mesma coisa. Pegam
toda a linguagem do outro e só
usam o tema local. Esse era o Chico
Science, apareceu aí na TV. Mas aí
é a coisa da letra, dizem que há caras ligadíssimos na realidade brasileira, o pessoal do rap de periferia, que fala da pobreza. Mas a linguagem musical não é brasileira.
Folha - Essas análises são comparáveis às encontradas no seu livro
de 66. O mundo para você não mudou nada desde então?
Tinhorão - Existe rico e existe
pobre, alguém manipulando o pobre. Que globalização? Globalizada é a fome. O que é permanente
no Brasil? A arte da pobreza tem
sido um valor permanente.
Folha - Por sua ótica, o homem
rico não tem legitimidade para fazer música popular.
Tinhorão - Popular, não. Toda
forma de arte é uma resposta a
uma necessidade, e você não pode
ter uma necessidade fora do seu
contexto cultural. A tendência do
sujeito que tem dinheiro é viajar
para qualquer parte do mundo
-esse sim é universal.
Folha - Um rótulo que sempre o
acompanha é o de "nacionalista".
Você é nacionalista?
Tinhorão - Nesse sentido, sim.
A primeira vez que vieram com essa conversa de que o mundo é uma
aldeia, eu quis saber
quem era o cacique. Eu,
que sou fazedor de frases, fiz esta: o que se chama de som universal é o
som regional de alguém
imposto para todo mundo. Por que o som universal é todo em inglês?
Não é coincidência.
Sou nacionalista, entendido nacional como
uma área delimitada em
que, ligadas por unidade
de língua, as coisas acontecem de um jeito que está inscrito no processo.
Folha - Sua calça é Yves
Saint-Laurent...
Tinhorão - É prática,
durável. Não é contradição. Se fosse marca de tênis, camisa, aí comporia
um quadro, uma tendência.
Folha - Por que um nacionalista como você foi
lançar "História Social
da Música Popular Brasileira" em Portugal e só
após oito anos em edição
brasileira?
Tinhorão - Por uma
razão prática e econômica. Eu ia correr atrás de
um editor brasileiro,
mas o português se interessou. Como adiantam
50% de direitos quando
o livro sai -aqui, quando o editor adianta 10% é
generoso- e ia haver
distribuição no Brasil,
valia a pena.
Folha - Você abandonou a crítica definitivamente?
Tinhorão - Não faço
mais, me prejudicou
muito. Você é obrigado a
opinar sobre pessoas que
têm suas paixões, há implicações
comerciais. Se elogia, o cara fica
todo satisfeito; mas, se põe alguma
restrição, é filho da puta, não soube compreender, está prejudicado
por sua colocação ideológica...
Folha - Quais artistas em atividade hoje o Tinhorão admira?
Tinhorão - Por exemplo, Antônio Nóbrega, um rapaz que pega a
cultura popular do seu Estado,
Pernambuco, mas, não sendo um
homem do povo, transfigura a linguagem popular que usa.
Elomar é a mesma coisa. Faz
aquele matuto, mas é teatro, ele
não é nada daquilo, estudou arquitetura, violão clássico, conhece
músicas de trovadores. Monarco,
considero excelente, gosto do jeito
dele cantar, abaritonado. Vital Farias é excepcional.
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