São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 1998

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'Exilei-me naturalmente', afirma o ex-crítico

da Reportagem Local

"Eu me exilei naturalmente", diz José Ramos Tinhorão, negando que suas posturas polêmicas tenham sido responsáveis pelo afastamento da crítica e pela falta de reconhecimento que ele próprio acusa em relação a seu trabalho.
Mais adiante, admite: "A crítica musical me prejudicou muito, as pessoas têm suas paixões, há implicações comerciais". A seguir, ele fala sobre globalização, rap, mangue beat e nacionalismo.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

Folha - Com que grau de interesse você continua a acompanhar as manifestações da música popular?
José Ramos Tinhorão -
Eu continuo vivo, né? Outro dia me procurou um rapazinho que transa nessa área de rap de periferia. Eu disse: "Ô, rapá, você sabia que o rap é uma nova versão da embolada?". Expliquei que foi preciso os garotos de rua de Nova York começarem a dançar daquele jeito e cantar falado para vir ao Brasil e passar a ser percebido. Mas é embolada.
/pingFolha - Toda uma vertente que nasceu da bossa nova se tornou hegemônica nas últimas décadas, e sua versão se tornou a oficial até por não haver contestadores. Você se exilou ou foi expulso desse circuito?
Tinhorão - Eu me exilei naturalmente. Quando você nada contra a corrente, não tem jeito, você vai ser um solitário. Eu não cedi nunca. Não quero citar nomes, mas colegas meus conhecidos cederam e foram simpáticos e conheciam pessoalmente o Jobim. Agora eu, por um dever de honestidade, não posso misturar possíveis simpatias pessoais com a análise. Análise é análise.
Tinhorão - Não faltam hoje colaborações "contra a corrente" nesse tipo de análise?
Tinhorão - Mas isso está na "História Social da Música Popular". Chego ao tropicalismo e termino falando do rock. A partir daí, digo, passa a ser declaradamente a música estrangeira feita no Brasil por brasileiros, vivemos a era do rock. Termina aí.
Outra coisa que se confirmou: eu dizia lá que foi um equívoco do Exército ter prendido Caetano Veloso e Gilbeto Gil, porque eles eram 1964 na música popular.
O que era a proposta dos militares? Aquele nacionalismo getuliano, Roberto Campos, ministro do Planejamento, dizendo: "Vamos abrir o jogo e pagar para ver, quem tiver a garrafa vende, quem não tiver se dana -deixa quebrar, importa, busca tecnologia estrangeira". É isso que FHC está fazendo agora de forma mais sofisticada, com o neo-liberalismo.
De certa forma, temos o Roberto Campos falando a mesma coisa que eu falo de mim: "Eu não dizia?". Está ele aí triunfante -mas ele triunfa pela direita e eu triunfo pela esquerda.
Mas os jovens realmente cultos gostavam de bossa nova, jazz e tal. Aí o Caetano entra, correndo por fora, e atrai esses jovens para a guitarra. Portanto, ele estava dentro do conceito econômico dos militares de 64. "Por que não nos habilitarmos a receber a tecnologia musical estrangeira e desenvolvê-la aqui? Nós vamos gozar o benefício." E estão gozando até hoje.
Por exemplo, eu cito o papel hediondo do Roberto Carlos no meu livro. É aquele rapazinho que todas as mães de famílias militares gostariam que fosse o namorado da filha. Por quê? Enquanto havia outros rapazes revoltados, que andavam fazendo músicas pregando a revolução social, indo explodir bomba e sequestrar embaixadores, ele, com aquele cabelo tão bonito, cantava coisas do consumo.
Folha - Como esse tipo de postura que você mantém resiste a um mundo globalizado?
Tinhorão -
O que se chama de globalização do mundo não é a globalização do mundo, é a globalização do capital financeiro. É a realidade imposta pelo capital. Há ricos e há pobres. Se você considera que a esquerda está ao lado dos pobres, os conservadores estão ao lado dos ricos. Pronto.
Folha - Você já usou Internet?
Tinhorão -
Não. Mas é um instrumento, uma ferramenta.
Folha - Essa ferramenta talvez inviabilize, pela quebra de barreiras que promove, o que você professa, a pureza de cultura nacional.
Tinhorão -
Não, não cai, rapaz, porque não cai a fronteira da pobreza, nem a da incultura. Tudo isso é uma mentira. Quem se beneficia da Internet? Uma minoria.
O contexto, hoje, mostra o grau de afastamento das pessoas que gostam de U-Dois, que são modernas, que calçam o último tipo de tênis (olha o tênis do repórter), sabem de tudo, mas não têm idéia de tempo, de ordem alfabética.
Folha - Num mundo ideal do Tinhorão, como seria a MPB hoje?
Tinhorão -
Seria diversificada, necessariamente, mas corresponderia ao contexto cultural de cada faixa dentro do processo cultural brasileiro. Se o cara parte para uma forma de conciliação com a sua realidade, dizendo: "É, eu sou pobre mesmo, então vou raciocinar como pobre", ele passa a fazer coisas coerentes com isso. Aí ele não se aliena.
Folha - Suponha um jovem como aqueles que fizeram o mangue beat, de classe média, que conhecem Internet, gostam de sons estrangeiros e manifestações regionais e cantam que "a cidade não pára, a cidade só cresce/ o de cima sobe, o debaixo desce". Cabe o rótulo de alienado aí?
Tinhorão -
Eles fazem uma conciliação, é a mesma coisa. Pegam toda a linguagem do outro e só usam o tema local. Esse era o Chico Science, apareceu aí na TV. Mas aí é a coisa da letra, dizem que há caras ligadíssimos na realidade brasileira, o pessoal do rap de periferia, que fala da pobreza. Mas a linguagem musical não é brasileira.
Folha - Essas análises são comparáveis às encontradas no seu livro de 66. O mundo para você não mudou nada desde então?
Tinhorão -
Existe rico e existe pobre, alguém manipulando o pobre. Que globalização? Globalizada é a fome. O que é permanente no Brasil? A arte da pobreza tem sido um valor permanente.
Folha - Por sua ótica, o homem rico não tem legitimidade para fazer música popular.
Tinhorão -
Popular, não. Toda forma de arte é uma resposta a uma necessidade, e você não pode ter uma necessidade fora do seu contexto cultural. A tendência do sujeito que tem dinheiro é viajar para qualquer parte do mundo -esse sim é universal.
Folha - Um rótulo que sempre o acompanha é o de "nacionalista". Você é nacionalista?
Tinhorão -
Nesse sentido, sim. A primeira vez que vieram com essa conversa de que o mundo é uma aldeia, eu quis saber quem era o cacique. Eu, que sou fazedor de frases, fiz esta: o que se chama de som universal é o som regional de alguém imposto para todo mundo. Por que o som universal é todo em inglês? Não é coincidência.
Sou nacionalista, entendido nacional como uma área delimitada em que, ligadas por unidade de língua, as coisas acontecem de um jeito que está inscrito no processo.
Folha - Sua calça é Yves Saint-Laurent...
Tinhorão -
É prática, durável. Não é contradição. Se fosse marca de tênis, camisa, aí comporia um quadro, uma tendência.
Folha - Por que um nacionalista como você foi lançar "História Social da Música Popular Brasileira" em Portugal e só após oito anos em edição brasileira?
Tinhorão -
Por uma razão prática e econômica. Eu ia correr atrás de um editor brasileiro, mas o português se interessou. Como adiantam 50% de direitos quando o livro sai -aqui, quando o editor adianta 10% é generoso- e ia haver distribuição no Brasil, valia a pena.
Folha - Você abandonou a crítica definitivamente?
Tinhorão -
Não faço mais, me prejudicou muito. Você é obrigado a opinar sobre pessoas que têm suas paixões, há implicações comerciais. Se elogia, o cara fica todo satisfeito; mas, se põe alguma restrição, é filho da puta, não soube compreender, está prejudicado por sua colocação ideológica...
Folha - Quais artistas em atividade hoje o Tinhorão admira?
Tinhorão -
Por exemplo, Antônio Nóbrega, um rapaz que pega a cultura popular do seu Estado, Pernambuco, mas, não sendo um homem do povo, transfigura a linguagem popular que usa.
Elomar é a mesma coisa. Faz aquele matuto, mas é teatro, ele não é nada daquilo, estudou arquitetura, violão clássico, conhece músicas de trovadores. Monarco, considero excelente, gosto do jeito dele cantar, abaritonado. Vital Farias é excepcional.



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