São Paulo, quinta-feira, 14 de março de 2002

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MÚSICA

Terceiro álbum solo do artista, "Falange Canibal" traz participações de Living Colour, Farlanders, Ani diFranco

Lenine briga com o seu próprio umbigo

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

"Umbigo, meu nome é umbigo/ gosto muito de conversar comigo/ umbigo, meu nome é espelho/ não dou ouvidos nem peço conselhos." Os versos são de "Umbigo", faixa que deve ser mesmo o umbigo de "Falange Canibal", o novo CD do pernambucano-carioca Lenine, 43.
Atacando temas que margeiam a vaidade e o ego de sua classe (e de outras), ele se apressa em se posicionar, entre ofensivo e defensivo: "Várias pessoas podem vestir a carapuça do "Umbigo", mas eu fiz essa canção só para mim. Isso vem de meu pai socialista, que muitas vezes me disse: "Cuidado, olha o que você está fazendo". É um auto-exorcismo".
Diz que o exorcismo funciona e vai além da peça de retórica de afirmar o ego negando-o. "Funciona. Lidar com exibição o artista lida, sempre. Eu lido, mas atenção, vou só até a página oito. É verdade que uma canção que fala do ego de cada um é um discurso prepotente, um subterfúgio. Não me acho egocêntrico, mas egoísta eu sou, sim. O ego é um ícone, estou dentro dele, não estou escapando por essa canção."
Lenine afirma que não é por conta da relação ambígua com o ego que seu rosto nunca aparece nas capas de seus CDs e as fotos dos encartes privilegiam closes de seus olhos claros. "Não coloco foto minha porque tenho desconfiômetro e espelho em casa", diz.
"Acredito que a música deva falar por si só, que o melhor que se faz em música é a música. Vejo uma confusão nesse processo, que ainda não consegui resolver."
Falando em cabeça, seus olhos de observador hão de convir que todo o exposto acima pode ameaçar remeter seu pop ao malfadado "papo cabeça".
Com médias de vendagens de discos que ainda não passaram de 90 mil exemplares, Lenine é hoje um artista de prestígio, mas ainda não chegou aonde o povo está -como de resto, quase todo o pop e a MPB atuais, ainda soterrados sob os escombros do axé. Debate a questão: "Faço meus discos para mim, em primeiro lugar. Depois para meus filhos, familiares e uns poucos amigos e parceiros, como Bráulio Tavares, Lula Queiroga, Pedro Osmar, Dudu Falcão e Ivan Santos, que são meus desconfiômetros. Intuo que agradando a eles tenho condições de agradar a mais gente".
Se o discurso aqui pareceu mais de pequeno mandando beijos no programa da Xuxa, Lenine tem de encarar a questão: e o público?
"Isso é uma incógnita. Não sei em que prateleira vai a música que faço. Quero acreditar que venho cristalizando uma platéia inquieta, de público universitário, que está à procura de informação. Não diria que meu público é jovem, mas se alguns adolescentes vêem alimento para a jovialidade deles em mim, acho ótimo."
Diz que não se sente pressionado, nem pelo ambiente de crise nas gravadoras, em que artistas de várias vertentes se igualam na queda de vendas e na pirataria.
"Não vejo essa crise, ela não me pegou. Continuo produzindo artesanalmente numa multinacional. Sei que há as leis de mercado, mas só quero poder fazer aquilo em que acredito, sentir orgulho do que faço e acreditar que acrescenta algo a alguém."
Com muito ou pouco público, com ou sem umbigo, Lenine não é um artista que produza solitariamente. Compõe quase sempre em parceria (são sete os parceiros, em "Falange Canibal").
Em suas participações especiais, o CD formula um mapa produtivo de artistas jovens (os eletrônicos cariocas Vulgue Tostoi e Monoaural) ou nem tanto (Eumir Deodato, José Miguel Wisnik), brasileiros (Frejat, membros do Skank e do Rappa) ou estrangeiros (Living Colour, Ani diFranco, o grupo russo Farlander).
O ápice de confronto se dá em "Caribantu", quando os jovens do elenco do musical "Cambaio" (2001) se olham no espelho da Velha Guarda da Mangueira.
Tanta convivência entre extremos cheira a antropofagia, a tropicália (a "papo cabeça"?). "Sim, o termo "canibal" traz uma associação direta com 1922, com a tropicália. É uma tradição que já está na gente, na verdade conheço pouco da obra de Caetano."
Responde se a cartilha antropofágica não é hoje mero anacronismo. "Desde os índios que não aceitavam trabalhar para o branco e reagiam comendo o inimigo, o Brasil teve uma arte canibal, e ela continua valendo."
Cerebral e observador, nem tudo ele remete à razão, no entanto, e prova falando de três novas canções que classifica como "de rua". "Caribantu", "Lavadeira do Rio" e "No Pano da Jangada" são música de rua, compostas sem instrumentos. São de arroubo, saem de uma vez", diz, dionisíaco.


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora BMG.



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