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CONTARDO CALLIGARIS
Convivendo com a bomba atômica
Parece que uma boa dúzia
de malas atômicas sumiram
da Rússia. Escrevo esta coluna em
Nova York, na rua 50. Há vários
dias, leio e escuto cálculos que
tentam responder a estas perguntas: se uma bomba nuclear portátil explodisse na ponta sul da ilha
de Manhattan, até que rua da cidade chegaria a destruição, até
que rua chegaria a contaminação?
Aqui, na 50, a gente duraria
pouco. Nosso filho, que mora
mais ao norte, na 115, nos dormitórios da Columbia University,
sobreviveria, mas não se sabe com
quais doenças futuras.
Claro, os comentadores supõem
que o lugar das Torres Gêmeas seja uma espécie de alvo permanente. Na verdade, a bomba poderia
explodir no meio da cidade. Ou
na sala de arte asiática do museu
Metropolitan -afinal, o Taleban
não gostava das estátuas do Buda. E por que o alvo não seria
Hollywood? Ou a Disneylândia,
para acabar com Mickey de uma
vez?
Até o fim dos anos 60, para
mim, a bomba atômica era a arma que existia para não ser usada. No fim da Segunda Guerra,
todos tinham constatado seus
efeitos e ninguém ia querer vê-los
de novo. União Soviética e Estados Unidos podiam brincar de
Coréia ou de Vietnã, mas eram
maneiras de evitar um enfrentamento direto, em que não haveria
vencedores. A crise dos mísseis soviéticos em Cuba havia demonstrado que a dissuasão funcionava: ninguém desencadearia o fim
do mundo. A não ser (lembrava
Kubrick, em 64) que o dr. Fantástico estivesse no posto de comando.
Além disso, na Europa, a fronteira da Guerra Fria era próxima,
mas a catástrofe nuclear parecia
particularmente distante. Por
uma vez, pensávamos, não seríamos o teatro da luta: se, apesar do
bom senso, soviéticos e americanos travassem guerra, os mísseis
passariam por cima de nossas cabeças.
Nos anos 70, a bomba atômica
democratizou-se. A dissuasão tornou-se mais arriscada. Eis um cenário que fazia sentido em 68,
quando os tanques soviéticos esmagaram a Primavera de Praga:
imaginávamos que a dita "primavera" acontecesse na Alemanha Oriental e fosse reprimida do
mesmo jeito. Os alemães do oeste
poderiam querer ajudar seus
compatriotas e, logo, os tanques
soviéticos penetrariam na Alemanha Ocidental. Talvez, para os
americanos, isso não justificasse
um engajamento atômico. Mas a
França, que saíra da Otan e possuía armas atômicas próprias,
poderia achar que seu santuário
nacional estivesse sendo ameaçado e reagir. Acima de dois, a dissuasão é incerta.
Para piorar, nessa mesma época, começou-se a falar nas armas
nucleares táticas, de efeito circunscrito. Essas novas bombas
atômicas serviriam para fazer a
guerra, e não para impedi-la: seria possível usá-las até num campo de batalha. Dessa vez, o espectro da guerra atômica veio para a
Europa. Se o pacto de Varsóvia
enfrentasse a Otan, talvez soviéticos e americanos não apertassem
o botão da destruição total, mas
trocassem minibombas nucleares
no solo europeu. O acidente de
Tchernobil, em 86, nos deu um
gosto dos efeitos possíveis.
Em 89, caiu o Muro de Berlim e
as armas nucleares pareceram ficar sem sentido. Em contextos localizados, as bombas continuavam garantindo dissuasões: entre
a Índia e o Paquistão, entre a China e Taiwan etc. Mas, aparentemente, os dois colossos nunca
usariam seu arsenal, tático ou estratégico que fosse. Alívio provisório.
Ora, o Ministério da Defesa
americano acaba de produzir
uma "Revisão da Atitude Nuclear", em que é evocada a necessidade de construir bombas atômicas que tenham um poder de
destruição circunscrito. Talvez essas bombas se tornem úteis na
guerra contra o terrorismo - por
exemplo, para destruir fortificações subterrâneas. A "Revisão" do
Pentágono revela sobretudo que
as armas atômicas não são mais
um espantalho. Começam, em
nossas próprias cabeças, a fazer
parte da sujeira ordinária da
guerra.
Os ataques terroristas do 11 de
setembro, se viessem de uma nação, seriam o protótipo da agressão que justifica uma resposta
atômica. Um contra-ataque nuclear não é possível só porque o
partido do terror não tem um território próprio que possa ser aniquilado em retorsão.
Será que, se existisse um santuário dos terroristas, a "Revisão"
do Pentágono poderia dissuadir
esses homens de empreender novos ataques? Seria um jeito de dizer: vocês trazem o horror à nossa
população civil, podemos prometer o mesmo, atacaremos suas bases com armas de destruição extrema. Claro que isso não inibiria
a Al Qaeda.
Contra o terrorismo, a arma
atômica não tem poder de dissuasão. Ela acaba sendo uma arma
como as outras. O terror pode
usá-la contra nós -e por que não
a usaríamos contra ele? Um dia
desses, seu uso nos parecerá completamente ordinário. E, a cada
manhã, mediremos a radioatividade, como hoje medimos a temperatura.
Nos EUA, foram aumentadas as
medidas de segurança para o
transporte de lixo atômico e de
materiais radioativos para uso
médico. Era (e continua sendo)
muito fácil apoderar-se de barras
radioativas destinadas a aparelhos radiológicos ou de esterilização. Preocupação excessiva? Alguém se lembra de Goiânia e do
césio-137?
ccalligari@uol.com.br
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