São Paulo, quinta-feira, 14 de março de 2002

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CONTARDO CALLIGARIS

Convivendo com a bomba atômica

Parece que uma boa dúzia de malas atômicas sumiram da Rússia. Escrevo esta coluna em Nova York, na rua 50. Há vários dias, leio e escuto cálculos que tentam responder a estas perguntas: se uma bomba nuclear portátil explodisse na ponta sul da ilha de Manhattan, até que rua da cidade chegaria a destruição, até que rua chegaria a contaminação?
Aqui, na 50, a gente duraria pouco. Nosso filho, que mora mais ao norte, na 115, nos dormitórios da Columbia University, sobreviveria, mas não se sabe com quais doenças futuras.
Claro, os comentadores supõem que o lugar das Torres Gêmeas seja uma espécie de alvo permanente. Na verdade, a bomba poderia explodir no meio da cidade. Ou na sala de arte asiática do museu Metropolitan -afinal, o Taleban não gostava das estátuas do Buda. E por que o alvo não seria Hollywood? Ou a Disneylândia, para acabar com Mickey de uma vez?
Até o fim dos anos 60, para mim, a bomba atômica era a arma que existia para não ser usada. No fim da Segunda Guerra, todos tinham constatado seus efeitos e ninguém ia querer vê-los de novo. União Soviética e Estados Unidos podiam brincar de Coréia ou de Vietnã, mas eram maneiras de evitar um enfrentamento direto, em que não haveria vencedores. A crise dos mísseis soviéticos em Cuba havia demonstrado que a dissuasão funcionava: ninguém desencadearia o fim do mundo. A não ser (lembrava Kubrick, em 64) que o dr. Fantástico estivesse no posto de comando.
Além disso, na Europa, a fronteira da Guerra Fria era próxima, mas a catástrofe nuclear parecia particularmente distante. Por uma vez, pensávamos, não seríamos o teatro da luta: se, apesar do bom senso, soviéticos e americanos travassem guerra, os mísseis passariam por cima de nossas cabeças.
Nos anos 70, a bomba atômica democratizou-se. A dissuasão tornou-se mais arriscada. Eis um cenário que fazia sentido em 68, quando os tanques soviéticos esmagaram a Primavera de Praga: imaginávamos que a dita "primavera" acontecesse na Alemanha Oriental e fosse reprimida do mesmo jeito. Os alemães do oeste poderiam querer ajudar seus compatriotas e, logo, os tanques soviéticos penetrariam na Alemanha Ocidental. Talvez, para os americanos, isso não justificasse um engajamento atômico. Mas a França, que saíra da Otan e possuía armas atômicas próprias, poderia achar que seu santuário nacional estivesse sendo ameaçado e reagir. Acima de dois, a dissuasão é incerta.
Para piorar, nessa mesma época, começou-se a falar nas armas nucleares táticas, de efeito circunscrito. Essas novas bombas atômicas serviriam para fazer a guerra, e não para impedi-la: seria possível usá-las até num campo de batalha. Dessa vez, o espectro da guerra atômica veio para a Europa. Se o pacto de Varsóvia enfrentasse a Otan, talvez soviéticos e americanos não apertassem o botão da destruição total, mas trocassem minibombas nucleares no solo europeu. O acidente de Tchernobil, em 86, nos deu um gosto dos efeitos possíveis.
Em 89, caiu o Muro de Berlim e as armas nucleares pareceram ficar sem sentido. Em contextos localizados, as bombas continuavam garantindo dissuasões: entre a Índia e o Paquistão, entre a China e Taiwan etc. Mas, aparentemente, os dois colossos nunca usariam seu arsenal, tático ou estratégico que fosse. Alívio provisório.
Ora, o Ministério da Defesa americano acaba de produzir uma "Revisão da Atitude Nuclear", em que é evocada a necessidade de construir bombas atômicas que tenham um poder de destruição circunscrito. Talvez essas bombas se tornem úteis na guerra contra o terrorismo - por exemplo, para destruir fortificações subterrâneas. A "Revisão" do Pentágono revela sobretudo que as armas atômicas não são mais um espantalho. Começam, em nossas próprias cabeças, a fazer parte da sujeira ordinária da guerra.
Os ataques terroristas do 11 de setembro, se viessem de uma nação, seriam o protótipo da agressão que justifica uma resposta atômica. Um contra-ataque nuclear não é possível só porque o partido do terror não tem um território próprio que possa ser aniquilado em retorsão.
Será que, se existisse um santuário dos terroristas, a "Revisão" do Pentágono poderia dissuadir esses homens de empreender novos ataques? Seria um jeito de dizer: vocês trazem o horror à nossa população civil, podemos prometer o mesmo, atacaremos suas bases com armas de destruição extrema. Claro que isso não inibiria a Al Qaeda.
Contra o terrorismo, a arma atômica não tem poder de dissuasão. Ela acaba sendo uma arma como as outras. O terror pode usá-la contra nós -e por que não a usaríamos contra ele? Um dia desses, seu uso nos parecerá completamente ordinário. E, a cada manhã, mediremos a radioatividade, como hoje medimos a temperatura.
Nos EUA, foram aumentadas as medidas de segurança para o transporte de lixo atômico e de materiais radioativos para uso médico. Era (e continua sendo) muito fácil apoderar-se de barras radioativas destinadas a aparelhos radiológicos ou de esterilização. Preocupação excessiva? Alguém se lembra de Goiânia e do césio-137?

ccalligari@uol.com.br



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