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São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Quando um presidente enlouquece

Um romance de fantasia política (ou político-ficção, como querem alguns) lançado há tempos nos Estados Unidos, tem como núcleo central uma hipótese que, tantos anos depois, pode estar acontecendo com George W. Bush. O escritor Fletcher Knebel, autor de "A Noite de Camp David" criou uma situação imaginária que pode tornar-se real em qualquer tempo, desde que o eventual ocupante da Casa Branca, tendo ou não um passado psiquiátrico, resolva tomar certas medidas ou insistir nelas.
O filão da ficção política, como o de sua equivalente, a ficção científica, é inesgotável e não é novidade. Para ficarmos num só exemplo, e talvez o mais conhecido, temos o caso de Alexandre Dumas, mestre no gênero até hoje. Muita gente conhece os subterrâneos da Revolução Francesa em seus livros, sobretudo em "As Memórias de um Médico", cujo eixo principal é a história do colar da rainha rigorosamente verdadeiro e que foi um dos ingredientes que causaram a queda de Luís 16 e da monarquia como um todo.
Dreaw Pearson, que ficou mais conhecido como jornalista do que como romancista, também enveredou pela seara da ficção política, sendo na realidade mais ligado à política do que à ficção. Escreveu dois romances, "O Senador" e "O Presidente", ambos notáveis pela ruindade da técnica e do estilo, mas reveladores de uma obsessão que angustia o cidadão norte-americano e, em parte, o cidadão de qualquer país do mundo.
A ação dos dois romances de Pearson transcorre num futuro não definido. Mais bem escrito e com gancho mais emocionante, o livro de Fletcher Knebel torna-se subitamente atual: a possibilidade de os Estados Unidos terem no supremo centro de suas decisões um homem sujeito a paranóias, desequilibrado emocionalmente ou mesmo vítima de uma loucura localizada ou generalizada.
O episódio central de "A Noite de Camp David" desenrola-se quase em surdina e apenas entre dois homens. O presidente em exercício convoca o vice-presidente para uma conversa íntima, não na Casa Branca, mas em sua casa de férias. É noite. O vice toca a campainha, estranhando a ausência de qualquer empregado. Uma voz abafada manda-o entrar, a porta ficara apenas encostada. Tudo está escuro na sala principal e o presidente está sozinho, de terno e gravata, como numa audiência formal. Apesar de estarem sós, de não haver ninguém nas proximidades, o presidente continuará falando baixinho, como se temesse ser ouvido por alguém mais.
E vem a conversa, que na realidade é um longo monólogo. O presidente comunica que se candidatará ao próximo mandato e que manterá o seu atual vice na chapa. Mas deseja desde já revelar uma grande jogada, aquilo que ele chama de "grande idéia".
O vice estranha a maneira de falar do presidente, fica satisfeito ao saber que poderá ser reeleito, mas quer saber alguma coisa sobre a "grande idéia".
Trocada em miúdos, a grande idéia do presidente é formar o mais colossal núcleo de poder jamais conhecido no mundo e registrado na história. Não uma aliança, um bloco, uma união política, social e econômica. Não um Reich que dure mil anos, como o que Hitler pretendia.
Muito menos um eixo ideológico contra o mal, nem mesmo um império baseado numa superioridade racial. Seria a formação de uma potência única, sem contestadores ideológicos e militares. Num primeiro momento, talvez fosse necessária a aliança com países assemelhados, mas apenas para o início de um novo mundo em que somente uma voz seria ouvida, somente um interesse seria satisfeito.
O vice quer saber mais detalhes. Afinal, qual seria a finalidade desse império único e absoluto a dominar a ferro e fogo todos os outros povos?
- A civilização, meu caro. Vale dizer, a nossa civilização, os nossos valores morais e materiais, nossas tradições de liberdade e justiça, nossa força de trabalho. Os pioneiros que aqui chegaram traziam a esperança de fundar um mundo realmente novo. Até certo ponto, conseguimos isso através de gerações. Agora seremos pioneiros de um mundo novo que seja realmente novo e que seja realmente mundo, sem limitações de fronteiras e soberanias.
O vice estranha a conversa, olha em torno, procurando distinguir na escuridão alguma garrafa de uísque por perto. Nada disso. O presidente está sóbrio. Tão sóbrio que polidamente pede que o vice se retire, não quer despertar suspeitas nos serviços de inteligência do Estado, uma conversa demorada com o vice em Camp David poderia criar uma especulação.
O presidente acompanha o vice até a porta. Pede o óbvio: absoluto sigilo sobre a "grande idéia". Até lá, conforme diz, o segredo será a alma do negócio.
De repente, o presidente tem uma idéia que não é tão grande como a anterior, mas deixa o vice espantado. Tira do bolso do paletó uma caneta e pede que o vice a guarde.
- Para quê? pergunta o vice.
- Para assinarmos juntos, só nós dois, a constituição do novo mundo que iremos criar.
O vice guarda a caneta e dirige- se ao seu carro. É o primeiro a saber que o presidente está louco.


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