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CARLOS HEITOR CONY
Quando um presidente enlouquece
Um romance de fantasia
política (ou político-ficção,
como querem alguns) lançado há
tempos nos Estados Unidos, tem
como núcleo central uma hipótese que, tantos anos depois, pode
estar acontecendo com George W.
Bush. O escritor Fletcher Knebel,
autor de "A Noite de Camp David" criou uma situação imaginária que pode tornar-se real em
qualquer tempo, desde que o
eventual ocupante da Casa Branca, tendo ou não um passado psiquiátrico, resolva tomar certas
medidas ou insistir nelas.
O filão da ficção política, como
o de sua equivalente, a ficção
científica, é inesgotável e não é
novidade. Para ficarmos num só
exemplo, e talvez o mais conhecido, temos o caso de Alexandre
Dumas, mestre no gênero até hoje. Muita gente conhece os subterrâneos da Revolução Francesa
em seus livros, sobretudo em "As
Memórias de um Médico", cujo
eixo principal é a história do colar
da rainha rigorosamente verdadeiro e que foi um dos ingredientes que causaram a queda de Luís
16 e da monarquia como um todo.
Dreaw Pearson, que ficou mais
conhecido como jornalista do que
como romancista, também enveredou pela seara da ficção política, sendo na realidade mais ligado à política do que à ficção. Escreveu dois romances, "O Senador" e "O Presidente", ambos notáveis pela ruindade da técnica e
do estilo, mas reveladores de uma
obsessão que angustia o cidadão
norte-americano e, em parte, o cidadão de qualquer país do mundo.
A ação dos dois romances de
Pearson transcorre num futuro
não definido. Mais bem escrito e
com gancho mais emocionante, o
livro de Fletcher Knebel torna-se
subitamente atual: a possibilidade de os Estados Unidos terem no
supremo centro de suas decisões
um homem sujeito a paranóias,
desequilibrado emocionalmente
ou mesmo vítima de uma loucura
localizada ou generalizada.
O episódio central de "A Noite
de Camp David" desenrola-se
quase em surdina e apenas entre
dois homens. O presidente em
exercício convoca o vice-presidente para uma conversa íntima, não
na Casa Branca, mas em sua casa
de férias. É noite. O vice toca a
campainha, estranhando a ausência de qualquer empregado.
Uma voz abafada manda-o entrar, a porta ficara apenas encostada. Tudo está escuro na sala
principal e o presidente está sozinho, de terno e gravata, como numa audiência formal. Apesar de
estarem sós, de não haver ninguém nas proximidades, o presidente continuará falando baixinho, como se temesse ser ouvido
por alguém mais.
E vem a conversa, que na realidade é um longo monólogo. O
presidente comunica que se candidatará ao próximo mandato e
que manterá o seu atual vice na
chapa. Mas deseja desde já revelar uma grande jogada, aquilo
que ele chama de "grande idéia".
O vice estranha a maneira de
falar do presidente, fica satisfeito
ao saber que poderá ser reeleito,
mas quer saber alguma coisa sobre a "grande idéia".
Trocada em miúdos, a grande
idéia do presidente é formar o
mais colossal núcleo de poder jamais conhecido no mundo e registrado na história. Não uma aliança, um bloco, uma união política,
social e econômica. Não um Reich
que dure mil anos, como o que
Hitler pretendia.
Muito menos um eixo ideológico contra o mal, nem mesmo um
império baseado numa superioridade racial. Seria a formação de
uma potência única, sem contestadores ideológicos e militares.
Num primeiro momento, talvez
fosse necessária a aliança com
países assemelhados, mas apenas
para o início de um novo mundo
em que somente uma voz seria
ouvida, somente um interesse seria satisfeito.
O vice quer saber mais detalhes.
Afinal, qual seria a finalidade
desse império único e absoluto a
dominar a ferro e fogo todos os
outros povos?
- A civilização, meu caro. Vale
dizer, a nossa civilização, os nossos valores morais e materiais,
nossas tradições de liberdade e
justiça, nossa força de trabalho.
Os pioneiros que aqui chegaram
traziam a esperança de fundar
um mundo realmente novo. Até
certo ponto, conseguimos isso
através de gerações. Agora seremos pioneiros de um mundo novo que seja realmente novo e que
seja realmente mundo, sem limitações de fronteiras e soberanias.
O vice estranha a conversa, olha
em torno, procurando distinguir
na escuridão alguma garrafa de
uísque por perto. Nada disso. O
presidente está sóbrio. Tão sóbrio
que polidamente pede que o vice
se retire, não quer despertar suspeitas nos serviços de inteligência
do Estado, uma conversa demorada com o vice em Camp David
poderia criar uma especulação.
O presidente acompanha o vice
até a porta. Pede o óbvio: absoluto sigilo sobre a "grande idéia".
Até lá, conforme diz, o segredo será a alma do negócio.
De repente, o presidente tem
uma idéia que não é tão grande
como a anterior, mas deixa o vice
espantado. Tira do bolso do paletó uma caneta e pede que o vice a
guarde.
- Para quê? pergunta o vice.
- Para assinarmos juntos, só
nós dois, a constituição do novo
mundo que iremos criar.
O vice guarda a caneta e dirige-
se ao seu carro. É o primeiro a saber que o presidente está louco.
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